O corredor de serviço do segundo pavimento era um mundo à parte: silêncio sepulcral, iluminação fraca de lâmpadas econômicas e um tapete gasto que abafava os passos. Lucas escutou apenas o batimento acelerado do próprio coração. Nenhum ruído de vozes, nenhum passo distante. O horário era perfeito; o clube era um casarão vazio àquela hora, os oficiais ainda ocupados com a fachada pública de seus dias.
Sua busca foi metódica e tensa. Passou pela entrada discreta da cozinha, onde o cheiro de molho já começava a se formar, e encontrou a escada estreita e íngreme. Subiu os degraus dois a dois, mantendo o ritmo controlado para não fazer barulho.
No alto, outro corredor, mais bem acabado. E então, à direita, a terceira porta. Madeira maciça, escura, encerada. E, pregada no centro, uma pequena placa de latão onde se lia, em letras sóbrias e desgastadas: "Cel. A. Sabará".
O ar ficou mais pesado ao redor daquela porta. Lucas tirou dois clipes de papel do bolso da calça, os mesmos que havia testado e retorcido na madrugada anterior, com dedos que agora tremiam ligeiramente não de medo, mas de adrenalina concentrada. Inseriu o primeiro, sentiu o pino, usou o segundo como tensionador. Não era um arrombador de cofres, mas a fechadura era velha, burocrática, mais para manter a privacidade do que para deter um invasor. Com um click sutil, quase musical, o mecanismo cedeu.
Ele empurrou a porta, entrou e a encostou sem fazer ruído. O cheiro que o envolveu era denso e característico: óleo de peroba da mobília encerada, misturado ao fantasma acre de charutos caros que haviam sido fumados ali por anos, décadas. O escritório era sóbrio, masculino, carregado de autoridade. Estantes de madeira escura com livros de capa dura, um retrato do general-presidente na parede, bandeiras dobradas em um canto.
O alvo estava à sua frente: a grande mesa de trabalho do coronel, uma fortaleza de madeira. Lucas não perdeu tempo admirando o ambiente. Abaixou até ficar atrás da mesa, usando-a como escudo. Começou pelas gavetas do lado direito. A primeira: formulários, canetas, selos. A segunda: correspondência recente, nada relevante. O coração afundou um pouco.
A última gaveta, a inferior direita, estava mais pesada. Ele puxou com cuidado. Lá dentro, não havia organizadores. Apenas uma pasta grossa de papel pardo, desgastada nas bordas, amarrada firmemente com um barbante encerado que formava um nó rígido. Não havia etiqueta.
Com mãos cuidadosas, Lucas desfez o nó o suficiente para espiar o conteúdo. O primeiro documento tinha um carimbo oficial e falava de loteamento, escrituras, uma fazenda em Minas Gerais... nomes, datas do início do século. O sangue correu mais rápido em suas veias. Era isso. Não eram documentos militares da ditadura atual; eram os papéis da fortuna de origem, os laços com a terra, as transações que talvez escondessem o rastro do avô e de seus segredos.
Bingo.
Sem hesitar, refez rapidamente o nó do barbante, não tão perfeito quanto o original, mas suficiente. Pegou a pasta, firme sob o braço. Um último olhar ao redor. Tudo parecia intocado.
Saiu do escritório, fechando a porta com o mesmo cuidado. O click da fechadura soou como um alívio agudo. Desceu a escada de serviço quase saltando, mas controlando cada queda de pé para evitar ruídos metálicos. A despensa estava como antes, apenas com Martinho agora sentado em um caixote, fingindo amarrar o cadarço da bota.
Lucas não precisou dizer nada. Seu olhar rápido e a pasta sob o braço eram a comunicação. Martinho levantou os olhos, um brilho de urgência neles. Com um gesto rápido do queixo, indicou uma pilha de caixas de madeira vazias que haviam sido despejadas num canto, aguardando o retorno.
Sem perder um segundo, Lucas deslizou a pasta de papel pardo para dentro de uma das caixas, entre lascas de madeira e pedaços de palha. Virou-se para Martinho, que já estava de pé.
— Conseguiu? — o velho sussurrou, o rosto uma máscara de tensão.
Lucas respondeu no mesmo tom, mas com uma centelha de triunfo contido nos olhos: — Acho que sim. Vamos embora.
Martinho não esperou por mais. Abriu a porta da despensa e berrou, em voz alta o suficiente para o sarganto na guarita ouvir:
— É isso aí, sargento! Tudo no lugar, como sempre! O resto das caixas vazias a gente leva pra não amontoar lixo aqui! Até a próxima, se Deus quiser!
Ganhou apenas um grunhido de resposta. Juntos, ele e Lucas carregaram rapidamente a pilha de caixas vazias para o caminhão, incluindo a que carregava o tesouro. Cada segundo era uma eternidade, cada ruído da rua parecia a chegada de uma viatura.
O baú foi fechado. A cabine, ocupada. Nelsinho, percebendo a tensão, engatou a marcha sem cerimônia.
O caminhão afastou-se da porta de serviço, virou a esquina, e só então, quando o prédio do clube desapareceu no retrovisor, um longo e coletivo suspiro pareceu ecoar dentro da cabine. A primeira parte, a mais arriscada, estava feita.
Agora, nas caixas vazias, jazia o Arquivo das Sombras do Coronel Sabará. O próximo passo era voltar ao sobrado do Correio Matutino e descobrir que segredos aquela pasta de papel pardo, cheirando a óleo de peroba e charuto, realmente guardava.
O caminhão de Nelsinho já havia percorrido algumas ruas, distanciando-se do perímetro de vigilância do clube, quando a tensão na cabine ainda era um fio de aço esticado. O silêncio era pesado, carregado pelo alívio ainda não processado e pelo peso da pasta escondida no baú.
Foi então que Seu Martinho, sentado no meio, entre Lucas e Nelsinho, deu um leve soco no ombro de Lucas. Um sorriso raro, que partia sua cara de couro curtido, apareceu sob o boné verde.
— O ponto de encontro era a loja, não lembra? Vira na próxima, Nelsinho.
Nelsinho, um homem de poucas palavras e muitas estradas, apenas acenou com a cabeça e fez uma curva suave. Em minutos, estavam de volta à rua estreita e à frente da loja de bebidas. Martinho saltou com uma agilidade surpreendente para sua idade.
— Dois minutos! — disse, e desapareceu dentro.
Lucas e Nelsinho trocaram um olhar. Do lado de fora, o mundo continuava seu ritmo normal, alheio ao roubo de segredos que acabara de ocorrer. Cada segundo parado era um risco, mas a autoridade de Martinho era inquestionável.
O velho reapareceu carregando, não uma garrafa, mas um engradado inteiro de Brahma, as garrafas âmbar suando de gelo recente. Ele abriu a porta do passageiro e jogou o engradado nos pés de Lucas.
O caminhão de Nelsinho estacionou na entrada do sobrado do Correio Matutino. A tensão da cabine havia se dissipado na viagem, substituída por uma urgência silenciosa. O engradado de Brahma gelada permanecia intacto aos pés de Lucas, um prêmio concreto que ainda não havia sido saboreado.
Seu Martinho desceu primeiro, olhou para um lado e para o outro da rua deserta da Lapa, e acenou com a cabeça. Lucas saltou, carregando o engradado com uma mão e, com a outra ajudando Nelsinho, retiraram do baú a pilha de caixas vazias, incluindo a preciosa. O caminhão partiu, seu ronco se perdendo no labirinto de ruas, enquanto os dois homens carregavam a carga suspeita para dentro do refúgio.
Dentro da redação, o ar estava carregado de expectativa. Ana, Laura, Paulo e Márcio interromperam o que estavam fazendo – organizando papéis, ajustando o mimeógrafo, vigiando a janela. O silêncio foi total quando a porta se fechou atrás de Lucas e Martinho. Todos os olhos estavam fixos na caixa de madeira comum que Lucas colocou com cuidado no centro da grande mesa de edição, agora varrida e limpa.
Foi então que Lucas ergueu o engradado de cervejas, o gelo já derretendo em fios de água pelo chão de madeira. Um sorriso amplo e aliviado, o primeiro verdadeiro desde que subiram a escada do clube, abriu-se em seu rosto.
— Pelo susto, pelo risco e pela saída pela porta da frente — anunciou, sua voz soando mais alta e clara do que o normal. — Hoje, a cerveja é por conta da casa.
O gesto quebrou o gelo da tensão. Riso nervosos e suspiros de alívio explodiram. Laura foi buscar um abridor de garrafas feito de um toco e um parafuso em uma gaveta. Em instantes, as garrafas âmbar foram distribuídas, o psiu das tampas abrindo ecoou pelo salão como uma sinfonia de vitória menor. Alice, que surgiu da copa com um pano de prato nas mãos, pegou a sua com um aceno de respeito para Lucas e Martinho.
— Saúde ao gatuno e ao velho lobo do mar — brindou Madame Satã, de seu canto, erguendo sua garrafa com uma dignidade real.
Todos beberam. O líquido gelado e amargo não era luxuoso, mas naquele momento, sabia a liberdade, a ousadia e a união. Era o sabor do coração batendo forte mas ainda no peito, do perigo enfrentado e temporariamente vencido. Bebiam com os olhos brilhando, conversando em frases curtas e alegres, os corpos relaxando da postura de alerta que mantinham há horas.
Todos, exceto Carlos.
Enquanto os outros brindavam e riam, aliviando a pressão, Carlos permanecia à margem, sua garrafa de Brahma intocada sobre a mesa, ao lado da caixa de madeira. Seus olhos, por trás das lentes dos óculos, não se desgrudavam daquela madeira simples. Suas mãos estavam limpas, nervosas, ansiosas. A mente analítica dele já havia processado o alívio e partido direto para o próximo passo: o conteúdo.
Não aguentou mais. Colocou a garrafa de lado com um movimento preciso e aproximou-se da mesa.
— Lucas — disse, sua voz cortando o burburinho suave da comemoração. Todos se calaram, voltando-se para ele. — Você está bem? Ninguém te viu?
— Tudo limpo, Carlos. Vinte minutos, como planejado.
Carlos acenou, quase sem ouvir a resposta completa. Seu foco já estava na caixa. — E… é isso? — Ele apontou.
Lucas engoliu um gole de cerveja e assentiu. — É. Terceira caixa.
Sem cerimônia, mas com uma reverência tácita ao perigo que representava, Carlos afastou as outras caixas vazias. Com as pontas dos dedos, como se tocasse em algo quente, removeu as tiras de madeira soltas e a palha seca do topo da caixa. Lá no fundo, envolta em sombras, estava a pasta de papel pardo, ainda amarrada com seu barbante encerado.
Um silêncio diferente, carregado de antecipação intelectual e um frio na espinha, tomou conta da sala. As garrafas foram pousadas. A comemoração instantânea havia cumprido seu papel; agora, era hora do trabalho real.
Carlos, com movimentos quase cirúrgicos, tirou a pasta da caixa e a colocou sob a luz crua da lâmpada pendente no centro da sala. Todos se aglomeraram em volta da mesa, formando um círculo íntimo. O cheiro do papel antigo, do óleo de peroba e do charuto, agora misturava-se ao odor de cerveja e suor na redação.
Com cuidado meticuloso, Carlos desfez o nó do barbante. A boca da pasta se abriu, revelando uma pilha densa de documentos amarelados, alguns manuscritos, outros datilografados em máquinas antigas, outros ainda carimbados com selos oficiais desbotados.
O primeiro documento, o que Lucas tinha visto, estava no topo. O carimbo e o título falavam de loteamentos e uma fazenda em Minas Gerais. Mas Carlos, com o olhar de um historiador caçador, não se prendeu a ele. Passou os dedos pelas páginas, sentindo a textura, vendo flashes de outros nomes, outras datas, assinaturas ilegíveis.
— Esta é só a capa — ele murmurou, mais para si mesmo do que para os outros. — O que importa está nas entrelinhas, nas anotações de margem, nos recibos… nos nomes que não deveriam estar juntos.
Ele ergueu os olhos, e por trás dos óculos, o brilho era de pura, intensa concentração. A cerveja estava esquecida. A festa acabara.
A caça aos segredos do Coronel Sabará entrava em sua fase mais crítica: a decifração.
— Laura, ajude aqui a separar isso. Ana, organize folhas de papel em branco para anotações. Paulo, você conhece a grafia do início do século, me ajude com estas cursivas. Lucas… descanse. Você já fez a parte dele. Agora é com a gente.
A redação do Correio Matutino transformou-se, naquele instante, em um centro de investigação de crimes históricos. O som de garrafas sendo levantadas foi substituído pelo sussurro de páginas sendo viradas com cuidado, pelo som da máquina de escrever sendo preparada, e pelo silêncio tenso de mentes trabalhando para desvendar, linha por linha, o arquivo das sombras que agora, finalmente, estava sob sua luz.
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