terça-feira, 9 de dezembro de 2025

O Arquivo das Sombras: 1968 (Bárbara dos Prazeres: A Bruxa, a Amante, a Guardiã)

 A história que corre entre as pedras úmidas do Arco do Teles é mais antiga e menos sombria do que os livros oficiais registram. Dizem que no século XVIII, uma portuguesa de olhos claros e porte altivo desembarcou no Rio com seu marido, um comerciante de vinhos de nome Manuel. Era Bárbara. O Arco do Teles, no então movimentado Largo do Paço, era a porta de entrada para uma vida de possibilidades — e de segredos.

Contam as histórias que ela assassinou seu marido para viver com seu amante, que Bárbara roubava bebês para beber seu sangue e assim, tornar-se imortal e jovem para sempre.

Mas como a história é sempre contada pela parte vencedora, não foi exatamente assim que aconteceu. 

A morte do marido de Bárbara foi um acidente. Ele chegou de madrugada, bêbado de absinto e encontrou a esposa dormindo nua, e em sua mente, imaginou que ela havia tido um relacionamento com outro homem, embora ela estivesse apenas com muito calor Ele pulou sobre ela e com as mãos suadas e fedendo a charuto, começou a apertar seu pescoço. 

Ao tentar se livrar das mãos do marido, ela por acidente derrubou um candelabro cuja chama da vela atingiu a cortina pesada do quarto, dando inicio a um incêndio. Ele se assustou, tentou levantar-se, mas devido a embriaguez, tropeçou, caiu e bateu com a cabeça na quina do baú de vestidos. Bárbara se enrolou em um lençol e fugiu correndo. 

Ela conseguiu escapar do prédio antes que boa parte dos três andares fosse destruída.

Sem roupas, sem posses, sem dinheiro, de posse apenas de sua beleza e educação, ela ficou de pé na rua por algumas horas, sentido em seu coração uma mistura de alívio e medo. Alívio por ter se livrado de um casamento com um agressor, medo por ter perdido tudo.

Ela vagou pela rua do comércio e entrou em um sobrado para pedir um copo de água. Duas moças sorridentes viram aquela mulher bonita parada ali, vestindo apenas um lençol branco e foram chamar Antônia, a dona do local.

Antônia acolheu Bárbara em sua casa, e assim ela começou a sua vida, atendendo aos mais nobres e eminentes personagens da alta sociedade carioca do século XIX.

O bordel ficava próximo a um convento, na praca XV. Eventualmente ela ouvia um chorinho de bebê e corria para a janela do seu quarto. Era mais uma moça deixando na roda dos esquecidos uma criança indesejada, fruto de estupro ou da falta de condições dignas de vida.

Um dia, Bárbara havia recebido a confissão de um cliente, de que a esposa havia perdido a vontade de viver depois que perdeu o filho no parto. Naquela noite Bárbara viu um bebê ser deixado na roda. Ela desceu rapidamente escondida sob o capuz do robe vermelho escarlate, pegou o pequeno pacotinho, deu seu dedo mindinho para o bebe sugar e fugiu dali. Enviou um recado para o cliente, que foi buscar a criança e o levou para a esposa.

Depois disso ela era procurada por outros clientes que desejavam substituir filhos natimortos. Criou-se toda uma história no entorno, de que ela era uma bruxa que se alimentava do sangue de bebês para manter a juventude eterna, porém Bárbara era uma precursora da assistência social, direcionando, mesmo que clandestinamente, bebês abandonados para casais que poderiam dar-lhes uma vida mais digna do que a de castigos e disciplina pesada oferecida nos orfanatos religiosos.

A lâmpada de gás na sala de Dona Tonha projetava sombras dançantes nas paredes de barro. O grupo, exausto mas incapaz de dormir, ouvia Lucas ler em voz baixa as anotações que haviam feito sobre as lendas do Arco do Teles, tentando entender a mulher que iniciara tudo.

Carlos, o estudante de Direito, franziu a testa ao ouvir a versão sanguinária da lenda. "É uma narrativa clássica de demonização," ele comentou. "A mulher que desafia a ordem, que se liberta de um marido, que tem autonomia sobre seu corpo e sua vida... na pena dos cronistas da época, ela só poderia ser uma monstro. Uma bruxa. Uma assassina de crianças."

Foi então que Ana, que permanecera em silêncio, com o pequeno diário florido de Isabela sobre o colo, falou. Sua voz era suave, mas carregada de uma certeza repentina.

"E se a história que escreveram sobre ela... for a mesma que tentaram escrever sobre Isabela?"

Todos a olharam.

"Pensem," Ana continuou, erguendo o diário. "Isabela foi pintada como louca, histérica, perigosa. Seu relato verdadeiro foi arquivado como 'delírio'. A violência que sofreu foi transformada em 'autoflagelo' ou 'acidente'. Eles reescreveram a realidade dela para proteger o poder do homem."

Ela olhou para as anotações de Lucas sobre Bárbara, a "Onça", a devoradora de crianças. "Bárbara escapou de um marido abusivo. Encontrou refúgio e agência em um mundo marginal. E usou essa posição para... ajudar. Para salvar bebês. Em uma sociedade que descartava crianças indesejadas como lixo, ela as resgatava e as colocava em lares que as desejavam. Que crime maior para os poderosos da época do que uma prostituta fazer o trabalho de caridade que a Igreja e o Estado falhavam em fazer?"

A peça se encaixava com um estalo silencioso que parecia ecoar através do tempo.

Bárbara dos Prazeres não era uma bruxa. Era uma resistente.

Sua "magia negra" era a rede de segredos que ela tecia, a mesma que permitiu que bebês desaparecessem da Roda dos Expostos e reaparecessem nos braços de mães enlutadas. O "sangue de crianças" que ela supostamente bebia era, na verdade, o sangue da vida que ela devolvia a elas. Os homens poderosos que a frequentavam — juízes, políticos, militares — confidenciavam-lhe seus medos, suas culpas, suas fraquezas. E ela usava essa informação não para chantageá-los com fins egoístas, mas como moeda de troca para seus atos de subversão bondosa.

Quando um cliente confessava a dor de não ter um herdeiro, ela sussurrava: "Há uma criança que precisa de um nome. Esqueça de onde veio. Dê a ela seu amor, e eu esquecerei o que você me contou sobre o desvio de verbas da alfândega."

Ela não colecionava segredos por poder. Colecionava-os por proteção. Proteção para si mesma, uma mulher sem direitos. E proteção para os inocentes que ninguém mais protegia.

Sua morte — o corpo não identificado no Largo do Paço — foi provavelmente o silenciamento final. Alguém que ela ajudou falou demais. Ou algum poderoso que ela possuía com um segredo decidiu que a bruxa sabia demais. Eles a mataram e lançaram seu corpo nas águas sujas da cidade, enquanto suas histórias de horror eram meticulosamente propagadas para enterrar sua verdadeira legado sob uma montanha de calúnias grotescas.

Mas seu espírito, alimentado pela injustiça de sua morte e pela força de sua missão clandestina, recusou-se a ser silenciado. Ela se tornou o que disseram que era, mas de uma forma que jamais entenderiam: um fantasma com propósito. A guardiã dos segredos não para usá-los com maldade, mas para garantir que a verdade, por mais suja que fosse, nunca fosse completamente apagada. Sua "bruxaria" era a memória incorruptível da cidade.

"Ela nos deu o diário dos Sabará," sussurrou Lucas, entendendo agora a profundidade do gesto. "Não foi um acaso. Ela guardou aquele segredo por um século, esperando as mãos certas. As mãos de quem também estava sendo caçado pelo poder. Ela viu em nós... ecos de si mesma. Perseguidos. Falando uma verdade que ninguém quer ouvir."

Madame Satã, que ouvira histórias da Bruxa do Arco a vida toda, balançou a cabeça com um respeito renovado. "Então nós não somos apenas instrumentos dela. Somos continuadores. Ela salvava bebês do abandono. Nós estamos tentando salvar a memória de uma mãe e a verdade de um povo da falsidade. É a mesma luta. Só o campo de batalha que mudou."

Dona Tonha, a benzedeira, que conhecia o peso das histórias mal contadas, acendeu seu cachimbo. "A terra aqui guarda um choro. O Arco do Teles guarda uma mentira que virou lenda. Vocês carregam a tarefa de trocar o choro por justiça, e a lenda por verdade. É um bom trabalho. Um trabalho digno dela."

Naquela noite, no sertão mineiro, o grupo entendeu que estavam ligados a Bárbara dos Prazeres por um fio que atravessava séculos. Eles não eram heróis acidentais. Eram, de certa forma, os últimos acólitos de uma santa herege, finalmente executando a vingança póstuma que ela arquitetara: usar o segredo mais podre que guardara para expor a podridão de uma linhagem e, no processo, limpar um pouco do sangue e das mentiras que mancharam seu próprio nome.

A Bruxa do Arco do Teles sorria, em algum lugar entre as sombras. Seu plano secular estava em suas mãos. E elas estavam firmes.

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