O silêncio na casa de Dona Tonha era espesso, carregado pela revelação da terra amaldiçoada. As palavras de Tonha sobre o choro de bebê ecoavam, encontrando um horrível paralelo nas anotações que Lucas ainda sentia queimando em suas mãos.
Foi ele quem quebrou o silêncio, sua voz de escritor soando clara, mas carregada de uma dor histórica:
"O choro que a senhora ouve, Dona Tonha... não é do Augusto. Não é dele." Ele olhou para os outros, vendo os mesmos fios conectando-se em suas mentes. "Lembrem-se do depoimento no diário de Bárbara. O avô do coronel, Alcebíades, confessou a ela. Sobre a escrava Jurema, que engravidou dele. E sobre o bebê. Ele disse: 'Resolvi o assunto no rio'."
A frase pairou no ar, mais aterrorizante agora, com o rio real, físico, correndo não muito longe dali.
Ana completou, os olhos úmidos: "Isabela perdeu seu Augusto para a crueldade. Mas Jurema perdeu seu bebê para... para o assassinato. Afogado. Nas águas do mesmo rio que levou o café roubado e o corpo do italiano."
Carlos fechou os olhos, a lógica jurídica e a empatia humana colidindo. "Duas crianças. Duas tragédias. Um rio. A terra guarda a memória. O choro que a senhora ouve é um eco misturado de inocência perdida. O lamento do filho de Jurema, que nunca teve nome, e a solidão do filho de Isabela, que teve um nome roubado."
A revelação adicionava uma camada ainda mais profunda de horror ao lugar. A terra dos Sabará não estava apenas assombrada pela fuga covarde ou pelo choro de uma criança abandonada. Estava mal-assombrada pelo infanticídio. Pelo pecado original daquela linhagem: a disposição de destruir a vida mais inocente para proteger o poder, o segredo, a "honra".
Madame Satã balançou a cabeça lentamente, um profundo respeito — ou temor — em seus olhos. "O fio da navalha corta gerações. A mesma água que levou o sangue do italiano a mando do avô, levou o bebê de Jurema a mando do bisavô. E lavou as lágrimas da Isabela. Esse rio é uma testemunha. Uma testemunha que chora."
Dona Tonha escutava, seu rosto de benzedeira sério. Ela não parecia surpresa, apenas confirmada em suas intuições mais sombrias. "A terra fala. E o rio chora. Sempre soube que a dor aqui era antiga, das profundezas. Agora vocês deram nome a ela." Ela ergueu o cachimbo. "Isso muda o trabalho. Não é só expor um segredo. É acalmar um espírito. Ou mais de um."
A missão, então, ganhava uma dimensão espiritual além da política. Eles não estavam apenas buscando justiça para Isabela, ou desmantelando o coronel. Estavam, de certa forma, respondendo a um apelo que vinha da própria terra, um apelo ecoado no choro noturno que Dona Tonha ouvia. O número 7, o grupo completo, parecia ter sido reunido não apenas pela perseguição, mas para um trabalho maior. Um trabalho de corte (como Maria Navalha), de abertura de caminhos (como Zé Pilintra), de revelação de verdades (como Bárbara) e, agora, de possível descanso para os que sofreram.
Lucas olhou para o grupo, seus seis companheiros. Sete almas contra o peso de séculos de injustiça. "Então temos que fazer mais do que publicar as provas," ele disse. "Temos que trazer a verdade para aqui. Para este lugar. Para que o rio ouça a verdade sendo dita em voz alta. Para que a terra saiba que o segredo não é mais segredo. Talvez só assim o choro pare."
O plano final se desenhava: usar o refúgio seguro de Dona Tonha, no coração das terras malditas dos Sabará, como base para lançar seu ataque midiático e jurídico. E, ao fazê-lo, realizar um ato de reconhecimento e memória que fosse tanto político quanto profundamente espiritual. Eles eram os 7 mensageiros, carregando o Arquivo das Sombras de volta à sua origem, para fechar o círculo de silêncio com a explosão da verdade. Bárbara, a Bruxa do Arco do Teles havia planejado tudo nos mínimos detalhes.
A afirmação paira no ar da sala de Dona Tonha não como uma suposição, mas como uma revelação que reorganiza o universo. A fagulha no olhar de Lucas se espalha para os outros, um a um, como um circuito que finalmente se completa.
Ana é a primeira a articular o que todos sentem. "Ela não apenas nos deu o diário. Ela nos guiou."
Carlos conecta os pontos, sua mente jurídica admirando a engenharia sobrenatural do plano. "O diário nos levou ao Arquivo Nacional. O Arquivo nos levou a Barbacena. Barbacena nos levou... aqui. À terra deles. À origem de tudo."
Madame Satã solta uma risada baixa, carregada de uma reverência sem precedentes. "A filha da puta genial. Ela não queria apenas que a gente derrubasse um coronel. Ela queria que a gente desenterrasse a raiz. Que a gente trouxesse o segredo podre de volta ao solo onde ele foi plantado, para que a podridão inteira viesse à tona de uma vez."
Paulo, o artífice, admira a arquitetura do plano. "Ela nos deu a ferramenta. Sabia que, com medo suficiente e raiva certa, iríamos atrás. Que encontraríamos Isabela. Que encontraríamos o rio."
Laura, cuja fúria sempre foi visceral, sente um calafrio diferente. "Ela usou a gente. Como mensageiros."
"Ou como instrumentos de justiça," corrige Lucas, um brilho quase fanático em seus olhos. "Ela é a memória da cidade. Ela coleciona histórias que não podem ser apagadas. E a história dos Sabará... era a mais podre de todas. Ela guardou a chave por um século, esperando as mãos certas para usá-la. Mãos que não tinham medo de sujar, de correr, de cavar."
Dona Tonha assente, seu rosto de benzedeira compreendendo perfeitamente a lógica de espíritos e pactos. "A entidade do Arco... ela não pode sair de seu lugar. Sua força está naquelas pedras, naquelas sombras. Mas a força dela pode se estender através de quem carrega suas palavras, sua verdade. Vocês são o braço dela. Os pés dela. E agora estão aqui, onde a dor começou."
A implicação é avassaladora. Cada encontro, cada fuga, cada descoberta — da perseguição inicial à fuga pelo buraco no muro, da proteção de Zé Pilintra na floresta ao refúgio providencial de Dona Tonha (outra mulher forte, ancorada na terra e no saber ancestral) — tudo parece se encaixar com uma precisão assustadora. Como se estivessem seguindo um roteiro escrito nas entranhas do Rio de Janeiro e da história do Brasil.
Barbara dos Prazeres não os resgatou apenas. Ela os recrutou. Colocou nas mãos deles uma missão com um objetivo claro: não a vingança pequena, mas a purgação histórica. Eles eram a ferramenta escolhida para aplicar o antídoto (a verdade) no local exato do veneno (o segredo enterrado).
O peso é imenso, mas também há uma libertação nisso. Eles não são mais apenas um grupo de fugitivos assustados. São agentes de um reequilíbrio maior. O número 7 agora faz todo o sentido: um conjunto completo, uma unidade movendo-se com um propósito que transcende a sobrevivência individual.
"Então não vamos só expor," conclui Ana, sua voz firme. "Vamos performar a verdade. Aqui. No palco que ela escolheu. Vamos usar tudo: as cartas, as fotos, o diário de Isabela, a história do rio. E vamos fazer isso de um jeito que o coronel Sabará não possa ignorar. Porque vamos tocar não só na sua carreira, mas na alma podre da herança dele."
Madame Satã esmaga o cigarro no chão de terra. "E a Bruxa do Arco vai ter o melhor assento da casa, mesmo a 400 quilômetros de distância. Porque quando a bomba estourar, o estrondo vai ecoar do Rio a Barbacena, e do Centro à serra. E ela vai saber que a conta do século finalmente foi cobrada."
O plano está definido. Eles têm o local, as provas, a motivação e, agora, a certeza de uma espécie de mandato sobrenatural. O próximo passo é a ação. Como fazer a verdade, guardada no Arquivo das Sombras, rugir tão alto que abafe o choro do rio e derrube um coronel?
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