segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

O Arquivo das Sombras: 1968 (parte III)

A pena de ferro era surpreendentemente leve na mão de Lucas, mas sua ponta parecia carregar o peso de um mundo. Ao tocá-la no papel pálido do livro de visitas, um arrepio percorreu seu braço, como um choque sutil e antigo. A tinta que escorreu não era preta, mas de um vermelho escuro e denso, como sangue ressequido.

Ele respirou fundo, o cheiro do perfume barato de Bárbara e da cera enchendo seus pulmões. Os olhos dos amigos estavam fixos nele. Laura, sua irmã, tinha o rosto tenso, os punhos cerrados. Os outros — Ana, Paulo e Carlos — pareciam paralisados, entre a esperança e o terror.

Lucas baixou os olhos para a página. E começou a escrever. As palavras não vinham como frases polidas de um panfleto. Escorriam como um rio de dor contida.

“Eles vieram às três da madrugada. A batida na porta não era um pedido; era uma explosão. Meu pai, ainda em pijama, disse ‘Vá, Lucas. Agora.’ Me empurrou para o quarto escuro. A única coisa que consegui fazer foi me enfiar no guarda-roupa, entre os casacos velhos do meu pai que cheiravam a cigarro e naftalina.”

A tinta vermelha parecia absorvida pelo papel, que emitisse um leve brilho fosforescente. Bárbara observava, imóvel, seus olhos escuros refletindo a chama da vela. O ar na sala ficou mais frio, mais denso.

“Ouvi a voz do meu pai, firme: ‘Não façam barulho, meus filhos estão dormindo.’ Ouvi a voz da minha mãe, um corte seco: ‘Não toquem nele!’ Depois, só o som de arrastar de pés, de coisas sendo viradas, de ordens secas. E o silêncio. Um silêncio que doía nos ouvidos. Fiquei ali por horas. Até a luz do dia raiar pelas frestas do armário. Até não aguentar mais o cheiro do medo, que era meu.”


Enquanto escrevia, Lucas não via mais a sala. Via o quarto estreito de Copacabana. Sentia o veludo áspero do casaco contra o rosto. Ouvia o eco dos passos sumindo no corredor do prédio. Uma lágrima solitária escorreu por seu rosto e caiu na página. Onde pingou, a tinta vermelha escureceu ainda mais, formando uma pequena mancha que parecia pulsar.

Laura engoliu seco, seu desejo vingativo dando lugar a uma dor irmã, compartilhada. Ela se aproximou, pôs uma mão no ombro trêmulo do irmão.

Bárbara fez um som suave, quase um sussurro de reconhecimento. “A solidão do sobrevivente,” ela murmurou. “O filho que fica para trás, escondido no escuro. É um peso antigo, esse.”

Lucas ergueu a cabeça, os olhos embaçados. “Eu não… não consegui fazer nada. Só fiquei lá. Escondido.”

“Você escreveu,” Bárbara corrigiu, sua voz suave mas firme. “E agora, sua história não está mais só com você. Está aqui. Alimentando as sombras que os protegem.”

Ela pegou o diário negro de segredos que havia mostrado antes e o deslizou pela mesa de mármore, em direção a Lucas.

“A página 47. O avô do coronel que comanda a operação que persegue vocês hoje. Ele era um cliente meu. Um homem importante, casado, devoto. Escrevia poemas horríveis e pagava em libras esterlinas. E confessou, em um momento de… fraqueza embriagada, como arranjou para sumir com um sócio que ameaçava revelar seus desvios no porto.”

Lucas pegou o diário com mãos trêmulas. Abriu na página indicada. A letra era elegante, curvilínea, da própria Bárbara, narrando em detalhes sórdidos um crime perfeito, esquecido há décadas. Havia nomes, datas, locais. Era dinamite pura, envolta em seda e perfume de um século.

“Isso… isso pode destruir a carreira do neto,” sussurrou Ana, espiando por sobre o ombro de Lucas.

“Pode,” concordou Bárbara. “Se usado com inteligência. Anonimamente. Em um jornal que ainda tenha coragem, ou nas mãos certas da oposição. Um escândalo moral, um crime de família… às vezes é mais eficaz que dez manifestações.”

Do lado de fora, o som das botas parou bem em frente à porta disfarçada. Uma voz grossa disse: “Aqui tem uma porta entupida. Parece abandonada. Batam.”

BAM. BAM. BAM.

A batida na madeira podre fez todos se encolherem. A vela tremeu violentamente.

Bárbara não moveu um músculo. Seus olhos brilharam com uma luz interna.

“Eles não veem o que não acreditam,” ela sussurrou, sua voz se fundindo com a penumbra. “E não acreditam em fantasmas… a menos que os fantasmas os assombrem com seus próprios pecados.”

Ela olhou para o grupo, depois para o livro onde a história de Lucas, úmida de tinta e lágrima, começava a secar, selando o pacto.

“O diário é de vocês. A história, agora, é minha. E esta porta…”, ela sorriu, um gesto lento e carregado de séculos, “…esta porta, para eles, permanecerá fechada.”

BAM. BAM. BAM.

“Abram! Polícia Militar!”

Mas a voz soava abafada, distante, como se vinda de outro quarteirão. As sombras no canto da sala pareciam se espessar, envolventes, protetoras. O cheiro de maresia e medo foi substituído, definitivamente, pelo perfume pesado e doce de Bárbara dos Prazeres.

Eles estavam, por enquanto, a salvo. Mas a um preço que apenas o tempo, e as páginas de um diário maligno, poderiam revelar.

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