A lanterna tremulava na mão de Anita. A poeira que ela levantava ao virar as páginas grossas dos livros-caixa parecia carregar os próprios ecos do sofrimento. Cada documento era um golpe.
Não eram apenas transações de terra ou inventários de café. Eram registros de vidas despedaçadas com a mesma frieza com que se anotavam sacas de grãos. "Item: uma escrava de nome Luzia, valor 800 réis, transferida para a fazenda de Parati como pagamento de dívida de jogo." Riscado ao lado, com outra caligrafia: "Falecida no parto, criança natimorta."
Havia recibos de médicos por "tratamentos" aplicados a escravos após "castigos". Listas de "peças" (pessoas) compradas e vendidas. E, em correspondências pessoais amarradas com fita desbotada, a verdadeira podridão transbordava. Cartas entre patriarcas Sabará trocavam conselhos sobre como "domar" escravas jovens, referindo-se a elas com termos animalescos e posse obscena. Uma linha, escrita com uma letra pomposa, fez o estômago de Ana revirar: "O fruto do meu pecado com a cabra Jurema nasceu fraco. Resolvi o assunto no rio. Deus entenderá a necessidade de limpeza do sangue."
E então, ela encontrou o processo mais grosso, com a etiqueta "CUSTÓDIA/FAMÍLIA SABARÁ - ISABELA C.". As folhas eram de um papel diferente, mais fino e ácido. O relatório de internação no Hospício de Barbacena, em 1901.
Paciente: Isabela Costa Sabará, 28 anos.
Diagnóstico: Histeria aguda, delírios persecutórios, furor contra a família.
Observações físicas: Apresenta extensas escoriações no rosto, pescoço e braços, consistentes com agressão por objeto contundente. Perda de quatro dentes incisivos. Queimadura de grau severo no olho esquerdo, causada por líquido em ebulição, resultando em cegueira permanente. A paciente alega ter sido atacada pelo marido, Sr. Geraldo Sabará, após recusar-se a "participar de uma sessão com suas amásias". A família desmente veementemente, atribui as lesões a acidente doméstico e ataques de autoflagelo durante surtos.
Prognóstico: Internação indefinida recomendada para segurança da própria paciente e da sociedade familiar.
Ana teve de se apoiar na mesa de madeira podre. O ar mofado e pesado do porão parecia se solidificar em seus pulmões. A náusea misturava-se com uma fúria profunda. Isabela Sabará. Uma irmã no tempo.
Foi ao vasculhar um maço de documentos financeiros e contratos que ela encontrou a peça que não esperava, mas que seria crucial. Um processo judicial civil, não criminal, movido pelo Banco Comercial do Rio de Janeiro contra Alcebíades Sabará (avô do coronel) em 1919.
O processo era denso, cheio de termos jurídicos, mas o cerne era claro: Alcebíades fora acusado de desviar um carregamento de café que servia de garantia para um empréstimo. O banco alegava que as 500 sacas sumiram no caminho entre a fazenda e o porto. A defesa de Alcebíades era elaborada: alegava roubo por cangaceiros.
Mas anexado ao processo, quase como uma peça esquecida, estava o depoimento de um capanga, João "Faca", dado em segredo à polícia e depois arquivado. O depoimento era uma confissão assombrosa:
"...o patrão Alcebíades me chamou e disse que o carregamento não ia pro porto. Disse que eu e mais dois homens tínhamos que interceptar o comboio na curva do rio, perto da Figueira Velha. A ordem era não deixar testemunha. O condutor, um italiano chamado Luigi, tentou reagir. Levei uma facada no braço, mas o Zé Bigode acertou o peito dele com a garrucha. Enterramos o corpo perto das pedras e afundamos as sacas no rio, amarradas em pedras. O patrão disse que o banco ia engolir o prejuízo. Me pagou cem mil-réis e uma garrafa de cachaça..."
O depoimento tinha uma assinatura cruzada (João era analfabeto) e a rubrica de um escrivão. Era a prova de um assassinato encomendado por Alcebíades Sabará para fraudar um banco.
Isso não era apenas um crime moral ou de violência doméstica. Era um crime econômico com sangue, um homicídio doloso para obter vantagem financeira. Era o tipo de coisa que, mesmo em 1968, não prescrevia moralmente e manchava qualquer um que carregasse o nome com o estigma de assassino e ladrão. Para um coronel que se vestia de autoridade e ordem, seria um golpe devastador.
Ana respirou fundo, a fúria agora canalizada em um cálculo gelado. Este era o núcleo da bomba. O testamento que mencionava o "incidente do rio" ganhava um contexto horrendo e específico. Ela copiou tudo: números do processo, trechos do depoimento, o nome da vítima (Luigi), dos capangas (João "Faca" e Zé Bigode). Era a arma definitiva.
O funcionário apareceu no topo da escada. "Acabou o tempo, Dona Anita."
Ela ergueu a cabeça. Nos olhos que ele viu através do véu, não havia mais altivez, mas a frieza de quem acabara de encontrar uma alavanca para mover o mundo.
"Está feito," ela disse, a voz estável como aço. "O assistente do desembargador virá amanhã. Tenha tudo isso pronto." Ela apontou não apenas para suas anotações, mas para as pilhas de documentos originais, com o processo do banco bem no topo.
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