Ana deu um passo à frente. Madame Satã a avaliou com um olhar crítico de estilista de guerra. "A menina tem coragem, mas coragem sem disfarce é suicídio. Você, com essa cara de santinha assustada e roupa de estudante, é um alvo ambulante."
Ela fez um aceno rápido para Alice, que pareceu entender imediatamente. Com um sorriso malicioso, Alice desapareceu atrás de uma pilha de caixas e baús em um canto ainda mais escuro do porão. Ouviu-se o arrastar de madeira e o tinir de cabides.
"Na minha época de glória," Alice disse, sua voz ecoando um pouco, "ter a roupa certa era a diferença entre comer caviar e comer pão com manteiga rançosa. E entre viver e morrer, também."
Ela voltou carregando um vestido. Não era uma roupa qualquer de "menina". Era uma peça dos anos 50, elegante e ousada para a época: um vestido justo de cetim azul-pavão, com decote em V profundo e alças finas. O tecido, embora guardado há anos, ainda mantinha um brilho opaco, como a asa de um pássaro exótico. Junto, ela trazia um casaco leve de renda preta (para disfarçar um pouco o decote, mas não muito), um par de luvas curtas de renda branca já amarelada, e um pequeno chapéu com véu que escurecia parcialmente o rosto.
"Tira essa roupa de 'catequista'", ordenou Madame Satã, com um gesto impaciente. "Veste isso. E o sapatos... Alice, os daquela italiana, com o salto que parecia uma agulha."
Enquanto Ana, com as bochechas ardendo de uma mistura de vergonha e adrenalina, trocava de roupa atrás de um biombo improvisado, Madame Satã dava as instruções finais.
"Você não é mais Ana, a estudante de filosofia. Você é Anita, uma secretária ambiciosa de um advogado importante que precisa consultar uns documentos de família, uma herança. Fala baixo, age com uma certa arrogância, mas a arrogância de quem é funcionária de alguém grande, não a dona do poder. Se perguntarem do que precisa, você diz 'procuração e registros de propriedade da família Sabará do início do século'. Inventa um nome para o advogado. Diz que ele te mandou na frente para 'adiantar o serviço'. O pessoal dos Arquivos é burocrata, adora um nome pomposo e odeia fazer muito esforço. Se você parecer saber o que quer e parecer ligada a alguém com influência, eles podem facilitar sem muita checagem."
Ana saiu de trás do biombo. A transformação era chocante. O vestido azul-pavão moldava seu corpo de uma forma que ela não conhecia. O chapéu com véu dava a seus olhos um ar misterioso e sério. As luvas brancas nas mãos trêmulas pareciam absurdamente formais. Ela parecia uma estrela de cinema noir, ou uma cortesã de alto padrão de uma era passada.
"Deus do céu," sussurrou Paulo, seus olhos arregalados.
"Está perfeita," disse Madame Satã, com um sorriso de satisfação profissional. "Ninguém vai ligar a 'Anita' à garota desesperada que corria da polícia. Vão ver uma mulher com segredos de outra natureza. E é disso que você precisa."
Alice ajustou o véu no rosto de Ana. "A cor está boa no seu tom de pele, querida. Lembre-se: você não está pedindo. Está exigindo um serviço que já foi pago, em nome do seu patrão. Firmeza nos olhos, mesmo se o coração estiver aos pulos."
Madame Satã entregou a Ana uma bolinha de couro desgastada, dentro da qual colocou algumas notas de cruzeiro novo e uma pequena lâmina de barbear, dobrada em um papel. "Para o suborno, se necessário. E a outra coisa... bem, você sabe. Só em último caso."
Carlos se aproximou. "A seção de registros de família e propriedade é no corredor leste do segundo subsolo. Procure por livros de cartório do Rio Antigo, de 1880 a 1920. A família Sabará era cafeicultora antes de virar milico. A riqueza veio de algum lugar."
Ana assentiu, engolindo seco. A responsabilidade pesava sobre seus ombros nus, mas o vestido, de alguma forma, também a armava. Ela não era mais só ela. Era Anita, uma criação de Madame Satã e Alice Cavalo de Pau, uma arma temporária enviada ao coração do inimigo.
"O ponto de encontro é o café do Largo da Carioca, às 16h em ponto. Se não estiver lá, assumimos o pior e mudamos o plano," disse Madame Satã, final. "Agora vá. Pela saída dos fundos, pela lavanderia desativada. E, Anita..."
Ana parou, se virando.
"...a Barbarinha gosta de coragem. E Maria Navalha aprecia um bom corte. Dê a elas um espetáculo."
Com um último olhar para os amigos — Lucas com expressão preocupada, Laura com admiração, Carlos com um apoio silencioso, Paulo ainda atordoado —, Ana virou-se e seguiu Alice pela escuridão do porão, o brilho azul-pavão de seu vestido sumindo nas sombras, como um peixe exótico mergulhando em águas perigosas.
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