terça-feira, 9 de dezembro de 2025

O Arquivo das Sombras: 1968 (Parte XVI)

Seu andar era o de uma mulher do campo, cansada mas determinada, os olhos baixos, evitando contato. Passou por poucas pessoas. Um velho em uma cadeira de balanço na varanda acenou com a cabeça. Um menino com um pião parou para observá-la. Ela era invisível, apenas mais uma figura na paisagem sertaneja.

A pequena agência dos Correios era uma sala única anexa à prefeitura. Tinha as paredes amarelas e portas de madeira azuis descascadas abertas para a rua de terra Na fachada, pintado com cuidado porém menos habilidade, o símbolo da ECT. Na sombra da entrada, um cão caramelo dormia profundamente, o flanco subindo e descendo num ritmo preguiçoso. No alto do telhado colonial, coberto de musgo, um sabiá cantava, seu trinado límpido e insistente cortando o silêncio quente do lugar. Era uma cena de paz profunda, quase anacrônica, considerando a carga que Alice trazia.

Dentro, o ar era morno e cheirava a papel velho e poeira. O funcionário, um homem magro de óculos grossos, batia uma carta em uma máquina de escrever enferrujada. Tac-tac-tac.

"Bom dia, moço," disse Alice, com a voz mais rouca e simples que pôde. "Preciso enviar duas cartas. Uma é urgente, registrada."

O homem ergueu os olhos, examinou-a por cima das lentes. "Registrada pra onde?"

"Pra Rio de Janeiro. Endereço de quartel." Ela viu os olhos dele estreitarem um milímetro. "Coisa de herança, acho. O 'adevogado' mandou." A mentira era banal, plausível.

"E a outra?"

"Essa é pro exterior. Pra um tal de Journal de Genève, na Suíça." Ela disse o nome tentando disfarçar a naturalidade que só anos de lidar com clientes estrangeiros na Lapa poderia dar.

Dessa vez, o funcionário parou de bater. "Jornal? Da Suíça? O que uma senhora da roça quer com jornal da Suíça?"

Alice soltou um suspiro, de quem explica algo pela centésima vez. "Não sou eu, moço. É pro doutor que tá hospedado na fazenda do seu Aurélio. É estrangeiro, tá pesquisando uns bichos do cerrado. Ele que pagou, ele que escreveu e mandou enviar. Deu até uma gorjeta pra agilizar." Sua mão, dentro da cesta, tocou levemente um maço de cédulas que Nelsinho lhe dera para "taxas e gorjetas".

O funcionário olhou para sua mão, depois para o envelope grosso e profissional do "manifesto-mundo", depois para o mais discreto endereçado ao coronel. A palavra "QUARTEL GENERAL DO EXÉRCITO" estava claramente escrita. O suborno implícito e o endereço militar criaram uma equação poderosa na mente burocrática dele: problema potencial vs. ganho imediato.

Ele pegou os envelopes, carimbou-os com mais força do que o necessário. "Taxa de registro e urgência internacional é cara," disse, sem olhar para ela.

"O doutor estrangeiro deixou verba," Alice respondeu, deslizando um valor generoso sobre o balcão.

O dinheiro desapareceu. Os envelopes foram colocados em uma sacola de correio. "Vai no ônibus das duas. Se Deus quiser e o caminho não estiver cortado pela chuva, chega no Rio em três dias. O internacional... vai depender dos aviões."

Alice assentiu, agradeceu com simplicidade e saiu. O cão caramelo abriu um olho, rolou para o outro lado e voltou a dormir. O sabiá no telhado continuou seu canto, alheio ao fato de que duas cartas, carregadas do segredo mais explosivo da região, acabavam de começar uma jornada que poderia mudar o curso de muitas vidas.

Missão cumprida na agência. Agora, a parte mais perigosa: encontrar Seu Zé Lopes, o radioamador, e garantir que a história não esperasse três dias para começar a circular. Ela seguiu pela rua da igreja, o perfume das ervas em sua cesta agora parecendo uma fina linha de defesa contra o cheiro de pólvora que ela sentia no futuro. O grito do sabiá, atrás dela, soava como um último aviso — ou um primeiro aplauso.

A casa de Zé Lopes era a última da rua da igreja, encostada na cerca que separava o povoado do capinzal. Humilde, de adobe rachado pintada de cal e telhado de barro que parecia ter sido feito nas coxas — desnivelado, com telhas capengas. Mas fincada no ponto mais alto do telhado, quase camuflada por um galho de ingá, uma antena de metal, fina e esguia, apontava para o céu como um dedo acusador. Era a única extravagância da construção, e uma que falava alto para quem soubesse ler os sinais.

Alice bateu na porta de madeira solta. Do lado de dentro, o silêncio foi absoluto por um longo momento. Então, passos arrastados. A porta gasta se abriu numa fresta, travada por uma corrente. Um olho, redondo e desconfiado como o de uma coruja, apareceu na brecha.

"Que é?"

"Seu Zé Lopes? A Dona Tonha do Sertão mandou um recado. Disse que o senhor gosta de conversar com o mundo."

O olho da coruja piscou. "Tonha não manda recado por estranha. Manda por maria-fumaça ou por pensamento."

"O recado é pesado. E é quente. Preciso de um rádio que não tenha medo de onda curta."

Houve outro silêncio. A corrente caiu com um tinido. A porta se abriu. Zé Lopes era um homem baixo e seco, com o rosto marcado por uma vida ao sol e pelos turnos noturnos escutando estática e vozes de outros continentes. Tinha um rádio-transistor pendurado no pescoço, sintonizado em uma emissora em alemão em volume baixíssimo.

"Entra. E fecha a porta. Se tiver armada, melhor ter vindo pra me matar logo, porque de doença do coração eu não morro."

Dentro, a casa era uma caverna de tecnologia obsoleta e papel. Rádios antigos, transmissores, pilhas de manuais, mapas cobertos de anotações. No centro, uma mesa abarrotada com seu equipamento principal.

Alice não perdeu tempo. Colocou a cesta sobre uma banqueta, afastou as ervas e tirou as cópias perfeitas que Paulo fizera do manifesto. "Isso aqui é uma história. A verdadeira história da família que fugiu daqui e hoje manda no DOI-CODI no Rio. Tem infanticídio, tortura, roubo de bebê e a lista de crimes do coronel que tá caçando gente."

Zé Lopes não tocou nos papéis. Seu olho de coruja percorreu a primeira página, fixando-se no nome SABARÁ. Um músculo tremeu em sua mandíbula. "E o que eu tenho com isso? Sou radioamador, não sou a polícia nem a Cruz Vermelha."

"O senhor é o único que pode fazer essa história chegar em Genebra, em Paris, em Nova York, antes que eles cortem a linha. Se esse papel chegar pelo correio, ele some. Pela sua antena, vira fogo. A Dona Tonha disse que o senhor odeia o governo desde 64."

"E desde antes também," ele resmungou, pegando finalmente as folhas. Seus olhos se moveram rapidamente, linha após linha. Alice via o impacto físico nele: os ombros se contraíam, a respiração ficava mais curta. Quando chegou à parte sobre o bebê afogado no rio — o mesmo rio que passa a dois quilômetros daqui, ela pensou —, ele fechou os olhos por um segundo.

"É verdade? Tudo isso?"

"Tudo. Tem fotos, tem diário, tem documento de cartório. Tá tudo escondido, mas a cópia é fiel."

Zé Lopes olhou para sua antena, depois para o horizonte pela janela suja, como se visse as ondas de rádio cruzando o sertão, o oceano, os continentes.

"Vai levar tempo. É muito texto. Tenho que cifrar partes, mandar em pedaços, para estações-relé em outros países. Eles remontam. O risco..."

"O risco é maior se ficar quieto," Alice cortou. "Eles vêm atrás da gente. E quando vierem, vão passar por aqui. E vão achar sua antena. E vão perguntar o que você transmite."

Foi um argumento prático, de sobrevivência. Zé Lopes entendeu. Ele não era um herói por ideologia abstrata, mas por pragmatismo raivoso.

"Vai custar. Risco tem preço. E combustível pro gerador. E silêncio."

Alice tirou um maço do dinheiro de Nelsinho do bolso do avental e colocou sobre a mesa, ao lado do manifesto. "É tudo que tenho. E o silêncio... a gente compra com a verdade sendo gritada lá fora. Quando o mundo souber, não adianta mais calar ninguém aqui."

Zé Lopes pegou o dinheiro, contou com gestos rápidos, assentiu. "Volta aqui depois do pôr do sol. Vai estar escuro. A luz fica acesa, mas a janela do sótão, virada pro campo, vai estar aberta. Se ouvir código morse vindo de lá, é que começou. Se não ouvir nada... reza."

Alice assentiu. Sua missão ali estava cumprida. Ela recolocou as ervas por cima do espaço vazio da cesta. Agora carregava apenas o perfume e o peso do que havia feito.

Ao sair, o velho olhou para ela, seu rosto ainda sério, mas com um novo brilho. "Diz pra Tonha... diz que o fantasma do rio vai ganhar voz hoje à noite. Voz que vai ecoar até na sala do presidente, se Deus quiser."

Era a benção dela. Alice saiu, fechando a porta atrás de si. Na rua, o sol estava alto. O canto do sabiá havia cessado. Havia apenas o silêncio quente do sertão, e a antena discreta no telhado torto, pronta para sussurrar os segredos mais sombrios do Brasil para o mundo inteiro, uma sílaba de código morse por vez. O Arquivo das Sombras estava prestes a ganhar os ares pelas ondas curtas do rádio.

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