Pela manhã, Dirceu, o filho do caseiro passou na casa. Se assustou com a presença de pessoas, e pegou um velho rifle. "Quem são vocês? O que fazem aqui? Essa propriedade é particular. Saiam ou chamo a polícia!"
A cena foi uma rajada de adrenalina matinal, cortando a tensão residual da noite. O grupo, ainda zonzo pelo sono interrompido e pela notícia fantasma no rádio, foi pego de surpresa pelo jovem robusto de chapéu de palha e rifle enferrujado na porta.
A reação foi instantânea: Lucas e Carlos ergueram as mãos, Ana e Laura ficaram paralisadas. Madame Satã e Alice, mais uma vez, foram as mais rápidas — não em se render, mas em se posicionar, seus corpos se tornando barreiras entre o rifle e os outros.
Foi o momento tenso que poderia ter descambado para o desastre, se não fosse por Paulo. Ele surgiu da cozinha, ainda esfregando os olhos, mas sua voz foi firme ao reconhecer a voz além da silhueta ameaçadora.
"Ei, Dirceu!"
O nome, dito com familiaridade, fez o jovem hesitar. Ele baixou um pouco o cano do rifle, franzindo a testa para enxergar melhor na penumbra da varanda. "Quem é?"
"Paulo. Neto do Seu Altino. Aquele que nunca acertava o pião e deixava você puto da vida."
A memória foi como uma chave. A expressão rígida de Dirceu quebrou, substituída por uma surpresa genuína. Ele abaixou o rifle de vez, encostando-o na parede. "Caramba... Paulo? O moleque magricela que passava as férias aqui? Não acredito. Cresceu pra caramba! Tá parecendo um homem de verdade!"
O alívio foi físico, como se o ar tivesse voltado para a sala. Paulo sorriu, um sorriso cansado mas real, e cumprimentou Dirceu com um abraço genuíno. Explicou, em linhas gerais e cuidadosamente editadas, que estava com amigos — "uns colegas da faculdade" — fazendo uma viagem de pesquisa, e que tinham decidido usar a casa vazia da família para se hospedar. Não mencionou perseguição, nem DOI, nem rádios piratas.
Dirceu, um homem simples cujo mundo era aquele morro, as cabras e a lealdade à família que seu pai servira, aceitou a história com uma naturalidade rural. "Faz sentido. A casa tá aqui, fechada. Melhor ter gente cuidando do que bicho tomando conta. Mas devia ter avisado, rapaz! Quase levo um susto dos bons."
Para reparar o susto e selar o pacto de hospitalidade improvisada, Paulo pediu, casualmente, se Dirceu sabia onde poderiam comprar alguns mantimentos, já que a viagem tinha sido repentina.
"Comprar? Bobagem," disse Dirceu, com o gesto generoso de quem vive da terra. "Minha casa é logo ali na curva. A Dora, minha esposa, fez pão de ontem ainda, tem queijo da cabra, leite fresco. Dou uma passada lá e já volto. Fiquem à vontade, mas não mexe nas coisas do vovô no quarto de trás, hein? Ele guarda as ferramentas de ourivesaria dele lá."
Minutos depois, Dirceu voltou com uma cesta de vime: pães redondos e pesados, uma roda de queijo de cabra curado envolta em pano, uma garrafa de leite ainda morno. E, como um gesto de ritual de passagem, uma garrafa de cachaça caseira, dourada, com um nó de raízes no fundo.
"Aqui," ele disse, entregando a garrafa a Paulo com um sorriso maroto. "Vovô mandou guardar pra quando você virasse homem. Pelos vistos, já virou. Toma. Pra esquentar as ideias nessa sua 'pesquisa'. Logo mais venho trazer um almoço."
Foi mais do que comida. Era sustento e proteção. A presença de Dirceu, agora aliada, era um escudo local. Ninguém questionaria a movimentação na casa se o filho do caseiro, uma figura conhecida e respeitada no morro, aprovasse.
Enquanto Dirceu se despedia, prometendo voltar no mais tarde com mais coisas, o grupo olhou para os mantimentos. A cachaça, em particular, parecia um símbolo. O "vovô" de Paulo, o ourives que eles nunca conheceriam, estava, de certa forma, abençoando sua resistência. Eles estavam sob um teto que era mais do que um esconderijo; era um legado, agora compartilhado com eles por um ato de memória e generosidade simples.
A ameaça do mundo lá fora — do coronel, dos soldados, das ondas de rádio carregadas de perigo — ainda existia. Mas naquele momento, com o cheiro do pão caseiro enchendo a sala e a garrafa de cachaça pousada sobre a mesa como um talismã, eles sentiram, pela primeira vez em dias, que tinham encontrado não apenas um refúgio, mas um lar temporário. A luta continuava, mas agora tinham pão, queijo e um pouco de fogo engarrafado para sustentá-los.
Após o desjejum substancioso — o pão denso mergulhado no leite de cabra ainda morno, o queijo salgado que despertava os sentidos —, a realidade básica do corpo cobrou seu preço. A poeira da estrada, o suor seco do medo, a sensação de terra entranhada na pele de dias de fuga tornaram-se uma coição física.
Laura foi a primeira a verbalizar o que todos sentiam, esfregando o braço onde a sujeira havia se misturado ao arranhão da floresta: "Precisamos de um banho. E roupas limpas. Chegamos aqui parecendo uns... fantasmas de terra."
Paulo, já mais à vontade no papel de anfitrião do refúgio, acenou com a cabeça em direção à escada de madeira que levava ao andar superior. "Lá em cima, nos quartos. Tem uns baús e um armário antigo. A gente sempre deixava umas roupas velhas guardadas aqui, pra quando viesse. Devem estar empoeiradas, mas são laváveis." Ele fez uma pausa, um sorriso nostálgico tocando seus lábios. "E ali nos fundos da casa, atrás da cozinha, tem o banheiro. Não é grande coisa, mas tem uma tina de madeira enorme. A que eu usava quando era pirralho. Dá pra encher com água da cisterna e esquentar umas panelas no fogão. Dá trabalho, mas é um banho de verdade."
A proposta era um luxo arcaico. Um banho de tina, aquecido no fogão a lenha. Após dias de fuga, soava como um spa.
A organização foi espontânea. Ana e Laura assumiram a tarefa das roupas, subindo as escadas rangentes para vasculhar os baús. Encontraram camisas de linho desbotadas, calças de algodão largas, vestidos simples de chita que deviam ter pertencido à avó ou às tias de Paulo. Havia tecido suficiente para todos, se não fosse pela moda, pelo menos pela higiene e discrição.
Madame Satã e Alice, com a eficiência de quem conhece o valor da água quente e da privacidade, foram para os fundos. Encontraram a tina, uma peça de madeira escura e úmida, mas ainda sólida. Com baldes, começaram o processo lento de enchê-la com água fria da bomba no quintal, enquanto no fogão a lenha da cozinha, Carlos e Lucas colocavam as maiores panelas que acharam para ferver água.
Paulo ficou de sentinela na varanda, vigiando a estrada de terra com os olhos do menino que conhecia cada curva daquele morro.
Foi um ritual coletivo de renascimento. O vapor das panelas subindo, o cheiro de lenha queimada misturando-se ao mofo das roupas velhas sendo arejadas nas janelas, o som de água sendo despejada na tina.
Laura foi a primeira a se banhar. O contato com a água morna (não quente, mas profundamente reconfortante) na velha tina foi quase transcendental. Ela esfregou a sujeira, o sangue seco do corte no braço (que Dona Tonha cuidara, mas a ferida ainda latejava), a memória física do horror. Vestiu-se depois com uma blusa de linho larga e uma saia longa, sentindo-se estranhamente leve, quase uma personagem de outro tempo.
Um a um, cada um teve seu turno na tina. Foi um ato íntimo, mas também comunitário. A água era trocada parcialmente entre um banho e outro, um gesto de economia e compartilhamento. As roupas velhas, lavadas à mão em uma bacia e estendidas no varal dos fundos, balançavam ao vento salgado, limpando simbolicamente não apenas a sujeira, mas um pouco do peso dos últimos dias.
Quando todos estavam limpos, vestidos com as roupas emprestadas que cheiravam a naftalina e sol, sentaram-se novamente na varanda. Eram as mesmas pessoas, mas sentiam-se reconfiguradas. O banho não lavara o perigo, nem apagara as memórias terríveis. Mas dera-lhes uma pausa. Uma sensação de normalidade roubada, de cuidado consigo mesmos.
Olhando para a baía lá embaixo, agora azul-turquesa sob o sol da manhã, vestidos como colonos de um século passado, eles se preparavam para o próximo ato. Estavam limpos, alimentados e escondidos. E o mundo, lá fora, começava a reagir à bomba que haviam detonado. O banho na tina tinha sido um interlúdio. Agora, era hora de voltar a escutar o rádio, de planejar o próximo movimento. O conforto era temporário. A guerra, eles sabiam, estava apenas começando.
Laura então resolveu subir para os quartos e procurar algo para forrar as velhas camas de ferro, e tentar descansar com algum nível de conforto. Ela abriu um grande baú que havia no que parecia ser o quarto principal.
Nos fundos do baú ela viu uma caixinha de madeira trancada com chave. Uma chave diminuta amarrada com uma fita de cetim amarela também jazia no fundo do baú. Ela testou a chave e ela abriu. Dentro da pequena caixa Laura encontrou documentos e uma constatação reveladora.
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