O grito de Laura ecoou pela casa silenciosa como um disparo. Não era um grito de medo, mas de uma descoberta tão profunda que arrancou o ar de seus pulmões. "Paulo, vem aqui AGORA!"
Os sons de atividades na casa cessaram. Passos pesados subiram a escada correndo. Paulo foi o primeiro a chegar ao quarto, onde Laura estava sentada no chão de madeira, pálida como a caiagem das paredes, a pequena caixa de madeira aberta no colo e os papéis espalhados ao seu redor.
"O que foi? O que tem?" Paulo ajoelhou-se ao lado dela.
Os outros se aglomeraram na porta: Ana, Lucas, Carlos, Madame Satã, Alice. Todos viram a perturbação no rosto de Laura.
Ela ergueu o manuscrito, sua mão tremendo levemente. "A letra... é a mesma. A do diário de Bárbara. A mesma caligrafia." Ela mostrou a página, onde uma escrita elegante, com curvas bem definidas, registrava uma promessa de cuidados. Era inconfundível.
"Mas o que diz?" perguntou Ana, adiantando-se.
Laura leu, sua voz ganhando força mas carregada de emoção:
*"Eu, Bárbara dos Prazeres, residente no Arco do Teles, na cidade do Rio de Janeiro, assumo perante Deus e os santos a obrigação de zelar pelo bem-estar do menino que hoje, 12 de outubro de 1898, é confiado aos cuidados do casal Hildebrando e Albertina Monteiro, desta cidade de Paraty. O menino é branco, tem cabelos castanhos, está vestido com um mandrião puído, envolto em cueiro de tecido xadrez branco e azul e touca de cambraia branca. Esta é uma criança de origem delicada, que precisa de um lar e um nome. Prometo vigiar, à distância, para que essa promessa seja cumprida."*
Um silêncio de incredulidade caiu sobre o grupo. Bárbara. Em Paraty. Em 1898. Envolvida na entrega de um bebê.
Laura então pegou a certidão de nascimento, amarelada e frágil. "E isso... isso é a certidão do seu avô, Paulo. Altino Gomes Monteiro. Nascido em 07 de outubro de 1898. Em Paraty. Filho de Albertina e Hildebrando."
As datas não batiam. A promessa de Bárbara era do dia 12. A certidão, do dia 07.
"Ele não nasceu aqui," disse Carlos, a mente jurídica processando mais rápido. "A certidão é falsa. Ou foi 'ajustada'. Eles registraram uma criança que já tinha cinco dias de vida, nascida em outro lugar, como se fosse filho natural deles, nascido no dia 07."
Paulo pegou a certidão, seus dedos acariciando o nome do avô. O homem que ele conhecera como um ourives quieto e sábio, que lhe ensinara a paciência com as mãos. "Vovô Altino... era adotado. E a Bruxa do Arco do Teles... foi quem o entregou."
A conexão era vertiginosa. Bárbara, a rede de bebês abandonados, a precursora da assistência social clandestina. Ela não operava apenas no Rio. Sua rede, seus contatos, seu senso de justiça para com os invisíveis, se estendia até Paraty.
E ela entregara um bebê justamente à família que, décadas depois, abrigaria seu neto e seus companheiros em fuga.
Não era coincidência. No universo dessa história, nada era.
"O cueiro xadrez... branco e azul..." sussurrou Ana, seus olhos se enchendo de lágrimas. Ela se lembrou das descrições no diário de Isabela. Não era a mesma criança, claro. Isabela perdeu Augusto em 1901. Este bebê era de 1898. Mas o método, a descrição minuciosa da roupa... era a assinatura de Bárbara. Ela fazia isso com todas as crianças que resgatava.
Madame Satã deixou escapar um longo assovio, baixo e respeitoso. "A malandra. A filha da puta genial. Ela não só nos deu a arma. Ela nos deu o esconderijo. Ela plantou uma semente de gratidão aqui em 1898, sabendo, ou sentindo, que um dia precisaríamos colher."
Paulo olhou para a caixa, para a chave minúscula com a fita de cetim amarela desbotada. Por que seu avô guardara isso? Talvez nunca soubesse a verdade completa. Talvez suspeitasse. Talvez a chave e a caixa fossem seu modo de guardar um mistério que ele não ousava decifrar, mas que não queria que se perdesse.
Laura ergueu-se, o manuscrito de Bárbara na mão. "Ela está em tudo. Desde o início. Ela não é só uma guia. Ela é a arquiteta. O Arquivo das Sombras... ele não é só um monte de papéis. É uma teia. E nós estamos no centro dela."
A descoberta mudava tudo. Dava um novo significado ao refúgio. Esta não era apenas a casa do avô de Paulo. Era uma casa abençoada, ou talvez protegida, por um ato de bondade clandestina da própria mulher que iniciara sua jornada. Eles não estavam apenas escondidos. Estavam sob a asa de Bárbara dos Prazeres, de uma forma muito mais literal e profunda do que imaginavam.
O medo ainda existia. O perigo era real. Mas naquele momento, naquele quarto empoeirado com a luz do entardecer filtrada pelas persianas de madeira, o grupo sentiu algo novo: um fio de destino. Eles não eram vítimas passivas da perseguição. Eram peças ativas em um plano muito maior, que atravessava gerações. E isso, de alguma forma, os encheu de uma coragem diferente. Não era mais apenas a raiva do perseguido. Era a determinação do escolhido para completar uma obra iniciada há setenta anos.
Passaram cerca de uma hora de pé, ali naquele canto espremido. Então ouviram passos dentro da casa.
Paulo? Ô Paulo! Pessoal, cadê vocês? Trouxe almoço!
Era Dirceu.
A cena na sala era de alívio cortado por uma nova e profunda angústia. Ao ver o grupo emergir pálido e tenso do corredor escuro, Dirceu, que estava na sala com uma cesta coberta por um pano, soltou um suspiro de exasperação.
"Paulo! Ora, eu não avisei que não era pra mexer nas coisas do vovô?" Mas seu tom era mais de preocupação do que de raiva genuína. Ele fitou a poeira nas roupas deles, o ar abalado. "Mas... o que tem lá? Por que se esconderam?" A curiosidade dele era a de um homem simples que sentia o cheiro do perigo, mas não entendia sua forma.
Foi então que ele lançou a bomba, como quem conta um fofoca preocupante do povoado: "Vocês viram? Os militares. Tão por toda parte. Encontraram um homem, disseram que é jornalista, escondido num sótão perto da Igreja Matriz. Levaram ele embora algemado. E não foi só ele, não. Levaram todo mundo que tava junto na casa... um casal de artistas, uns estudantes. É assustador, né? Não sei o que vai acontecer com eles."
As palavras de Dirceu caíram como pedras no silêncio da sala. Jornalista. Artistas. Estudantes. Não era uma operação de rotina. Era uma caçada. Eles não estavam atrás apenas do grupo de Lucas e Ana; estavam varrendo Paraty em busca de qualquer voz dissonante, qualquer "elemento subversivo". O vazamento do rádio devia ter colocado toda a região em alerta máximo, e a cidade-refúgio estava sendo varrida.
O alívio por não terem sido os descobertos foi imediatamente substituído por um peso de culpa e terror. Outras pessoas estavam sendo levadas para o inferno que eles conheciam tão bem, talvez por estarem no lugar errado, na hora errada, por parecerem "diferentes".
Paulo engoliu seco. "Dirceu... esses militares... eles perguntaram por essa casa? Por nós?"
Dirceu franziu a testa, pensativo. "Ah, perguntaram sim. Andaram batendo em várias portas ali na curva. Quando chegaram na minha, eu falei que a casa do Seu Altino tava fechada há anos, que só eu vinha cuidar do mato. Eles olharam pra cá de longe, acharam que era verdade. A casa parece mesmo abandonada, com as janelas todas fechadas. Seguiram caminho. Mas tão revirando tudo. Parece que tão procurando alguém específico, ou algo."
Ele não fazia ideia de que os "alguém específicos" estavam diante dele, comendo pão com as mãos trêmulas.
Madame Satã trocou um olhar significativo com o grupo. A situação era pior do que imaginavam. A rede estava se fechando. Eles não podiam ficar ali. A casa, mesmo com o esconderijo, era um alvo muito óbvio agora. A generosidade de Dirceu os protegeria até certo ponto, mas se a pressão aumentasse, se trouxessem cães, se interrogassem os moradores com mais rigor... poderiam prejudicar Dirceu e sua família.
"Dirceu," disse Ana, sua voz suave mas firme. "Esse almoço... você pode nos fazer um último favor? Maior ainda?"
O rapaz olhou para ela, sua lealdade simples conflitando com o crescente medo nos olhos dos hóspedes de seu amigo. "O que é?"
"Precisamos sair daqui. Mas não podemos ser vistos. Você conhece... alguém com um barco? Alguém que possa nos levar pela baía, sem passar pelo centro, sem chamar atenção?"
A fuga por mar. Era o único caminho que restava no labirinto de pedra que agora tinha soldados em seus corredores.
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