Lucas, o rapaz de óculos, meio CDF e o escritor do grupo perguntou a ela o que ela tinha para oferecer, e se ela poderia ajudá-los a derrubar o regime, e o que ela desejaria em troca.
Laura, sua irmã falou que entregaria de bom grado as tripas de um militar e os demais fizeram careta de nojo.
A bruxa Bárbara soltou uma risada baixa, gutural, que ecoou na sala pequena como o arrastar de seda velha sobre pedra.
"Ah, minha fera,” disse ela, voltando-se para Laura com um brilho de reconhecimento nos olhos. “Conheci muitas como você. Com fogo na veia e ódio no olhar. Ódio é uma ferramenta… mas enferruja rápido e corta a mão de quem segura.”
Ela então fixou os olhos em Lucas. O olhar dela era pesado, como se lesse não apenas suas palavras, mas os rascunhos de ideias nas margens de sua mente.
“Pergunta direta. Gosto disso. O que eu tenho para oferecer?” Ela passou a mão sobre os livros na estante. “Não ofereço exércitos, nem bombas. Ofereço memória. Ofereço esquecimento. Ofereço… uma chave.”
Ela puxou da estante um livro pequeno, encadernado em couro de aparência úmida e escura. Não tinha título.
“Neste diário,” ela segurou o livro com certa reverência, “estão os nomes, os vícios, os segredos podres de homens que construíram esse país. Homens que ainda têm netos no poder. Homens cujos esqueletos estão enterrados em orações, mas cujas almas estão gravadas aqui, em confissões feitas a uma prostituta que sabia ouvir.”
Ela o colocou sobre a mesa de mármore, ao lado da vela. A chama pareceu se contraver.
“Posso ajudá-los a abalar o regime? Não com uma revolução. Mas com um escândalo. Um que corte a linha de sangue, não a cabeça. Um que manche um nome para sempre.” Seu sorriso ficou amargo. “A política, eu aprendi, é um negócio de famílias. Sujam o nome da família, e o poder murcha.”
“E em troca?” insistiu Lucas, ajustando os óculos, tentando parecer mais cético do que se sentia. O coração batia forte em seu peito. Aquilo era loucura. Mas era uma loucura que cheirava a verdade.
Bárbara cruzou os braços. A luz dançante projetava sombras profundas em seu rosto.
“Em troca, quero uma história.”
Os jovens se entreolharam, confusos.
“Uma história?”
“Sim. A de vocês. Não o que fizeram hoje. Mas o porquê. O que os move. O medo, o amor, a raiva… a esperança. Quero que escrevam. Aqui. Neste meu livro de visitas.” Ela apontou para um volume maior, aberto sobre um pedestal, com páginas em branco que pareciam feitas de um material fosco, quase como pele.
“Palavras têm peso. Palavras têm alma. E almas… são a única moeda que vale algo neste meu canto entre os mundos. Alimentam-me. Mantêm estas paredes de pé. A cidade lá fora esqueceu de mim. Vocês… vocês lembram. Mesmo sem saber, vocês me chamaram ao cruzarem o Arco com tanto medo no coração. O desespero é um tipo de oração.”
Ela olhou para a porta, como se pudesse ver através da madeira.
“Os homens de botas lá fora… eles tentam apagar histórias. Eu coleciono as que não podem ser apagadas. A história de vocês é perigosa. É real. É combustível. É o que eu desejo.”
Laura franziu a testa. “E se não escrevermos?”
Bárbara encolheu os ombros, um gesto elegante e fatalista.
“A porta se abre. E vocês voltam para as pedras molhadas da Praça XV. Eu não prendo ninguém. Só ofereço um abrigo… por um preço.”
Do lado de fora, uma voz autoritária ecoou: “Revistem aquela viela! Eles não podem ter sumido!”
O som estava perto. Muito perto.
Todos olharam para Lucas. Ele era o escritor. O guardião das palavras do grupo. Ele olhou para o diário negro de segredos, depois para o livro de visitas com suas páginas pálidas e famintas. Um segredo podre do poder, em troca da essência pura de sua luta. Era um pacto faustiano nas entranhas do Rio.
Ele respirou fundo.
“E se…,” sua voz saiu mais firme do que esperava, “escrevermos nossa história… mas mentirmos? Ou escrevermos só o que você quer ouvir?”
Bárbara dos Prazeres riu novamente, e desta vez foi um som frio, como gelo rachando.
“Oh, meu doce escritor. As paredes aqui… elas sentem a verdade. E o livro… ele só bebe tinta que vem da alma. Podem tentar enganar uma bruxa. Mas não enganem a si mesmos. Não aqui.”
Ela estendeu a mão, indicando a pena de ferro apontada ao lado do livro aberto.
“A escolha é de vocês. O amanhecer… ou as sombras. A fuga… ou a profundidade.”
O silêncio na sala era opressivo, cortado apenas pela respiração ofegante do grupo e pelo gotejar distante de uma infiltração. A decisão pendia no ar, úmido e pesado como a noite carioca.
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