A volta de Alice trouxe não apenas notícias, mas os elementos brutos de um ritual de sobrevivência e resistência. Dona Tonha pegou a cesta e, sem pressa, iniciou o processo que era tanto de alimentação quanto de alquimia sertaneja.
Primeiro, a cebola. Um bulbo branco e firme, retirado de uma trança de palha pendurada na viga. Com uma faca curta e afiada que parecia uma extensão de sua mão, ela a cortou nas mãos, sem usar tábua. As fatias caíram em um prato fundo de barro com um som úmido e preciso. O cheiro acre e promissor se espalhou.
Depois, a carne seca. Endurecida pelo sol e pela cura, ela a colocou em uma tigela com água quente para amolecer um pouco. Enquanto isso, seu olhar vasculhou a prateleira de madeira grossa na parede, até encontrar o que procurava: uma lata de gordura suína, branca e sólida como sebo de vela. Com uma colher, desprendeu uma boa porção e a derramou na panela de ferro preta já aquecida sobre as brasas. A gordura derreteu com um sibilo baixo, liberando um aroma profundo e ancestral.
As fatias de cebola foram para a gordura fumegante, chiando e dourando rapidamente. Tonha então pegou a carne seca, agora menos rígida, e a desfiou com os dedos, direto na panela. O som era seco, áspero, misturando-se ao chiado da cebola.
Então, o toque mágico. De um pequeno frasco de vidro com rolha, ela tirou uma colherada de seu molho de pimenta malagueta caseiro. Uma pasta vermelha e densa, feita com pimentas secas ao sol e piladas no pilão com alho e sal. O contato com a gordura quente liberou uma fumaça picante que fez os olhos arderem à distância, um perfume que era tanto um alerta quanto um convite.
Por fim, as folhas de couve. Verdes escuras e brilhantes, colhidas do pé atrás da casa. Elas foram picadas grosseiramente e jogadas por cima do refogado já dourado e aromático. O verde vivo começou a murchar, absorvendo toda a gordura, a pimenta, o sabor defumado da carne.
Em outro caldeirão ela acrescentou água e despejou, aos poucos, o fubá amarelo que Alice trouxera, mexendo com a grande colher de pau em movimentos circulares e constantes. O angu começou a nascer, engrossando, passando de um líquido leitoso para uma massa cremosa e pesada que grudava na colher. Era o alimento do sustento, do trabalho duro, da resistência física. A comida que sustenta a luta.
Enquanto o angu cozinhava, liberando um vapor quente e reconfortante que se misturava ao cheiro da pimenta e da couve, a conversa de conspiração continuava em vozes baixas ao redor da mesa. O ritual de Tonha era o contraponto perfeito: um ato de criação, de cuidado, de provisão, enquanto eles tramavam um ato de destruição (da reputação dos Sabará) e de revelação. As mãos que desfiavam a carne seca eram as mesmas que, horas antes, haviam manuscrito a sentença de um coronel. A gordura suína que sustentava a refeição era tão fundamental para sua sobrevivência quanto as ondas de rádio que em breve transmitiriam seus segredos.
Alice bebeu um longo gole de água fresca da moringa antes de falar.
"Os moradores daquele povoado... são como a terra. Secos, observadores, desconfiados. Mas não são da polícia. O medo deles é outro. É o medo da seca, da doença, do abandono. O homem dos correios viu o endereço do quartel e o dinheiro, e escolheu o dinheiro. É um homem que entende de sobrevivência, não de ideologia."
Ela contou sobre o encontro com Zé Lopes, descrevendo a casa-caverna cheia de rádios, o olho de coruja do velho, seu cinismo inicial.
"Ele não é um herói. É um homem com raiva guardada e uma antena no telhado. Mas quando leu o nome Sabará... alguma coisa mudou. Ele conhece a história. A terra lembra, e ele ouve a terra através do rádio. Aceitou o dinheiro, mas aceitou a missão também. Disse que o 'fantasma do rio ia ganhar voz'."
A revelação sobre Zé Lopes acionando o transmissor após o pôr do sol deu uma sensação concreta e eletrizante ao plano. A verdade não estava mais apenas em papéis estáticos; estava sendo convertida em ondas de rádio, viajando pelo éter, impossível de ser contida dentro de um arquivo.
"Mas ele me mandou voltar lá de noite," Alice continuou, seu rosto sério. "Pra escutar. Se houver código morse vindo do sótão, é porque começou. Se não... é porque algo deu errado, ou ele foi pego antes de começar."
O peso dessa vigilância pousou sobre o grupo. A próxima fase dependia de um velho radioamador solitário em uma casa de telhado torto.
"E as cartas dos correios?" perguntou Lucas, o escritor ansioso para que suas palavras atingissem seu alvo.
"Em trânsito. A do coronel, em três dias. A do jornal suíço... depende dos aviões. Mas a do rádio será a primeira. Será a faísca."
Dona Tonha, que mexia o angu com uma colher de pau grande, falou sem se virar: "O vento tá mudando. Dá pra sentir. O cheiro da poeira antes da chuva. Essa noite vai ser de escuta. E de preparo."
Madame Satã concordou, acendendo um cigarro. "Agora é a parte mais perigosa: a espera. Eles vão reagir. O coronel Sabará, quando a mensagem do rádio começar a circular em circuitos internacionais, vai sentir o chão tremer. E o primeiro instinto dele vai ser atacar a fonte. Ele tem recursos. Vai pressionar os correios, vai vasculhar a região de onde o sinal partiu."
"Precisamos estar prontos para partir antes do amanhecer, independente do que Alice ouvir ou não na casa do Zé Lopes," disse Carlos, pensando estrategicamente. "Nelsinho precisa estar com o caminhão abastecido e pronto. Se o morse começar, é nossa confirmação de que a primeira fase deu certo, e nós vazamos. Se não começar... vazamos do mesmo jeito, mas sabendo que o plano A falhou e que o perigo está ainda mais perto."
O plano estava claro. A noite seria de vigília, nervos à flor da pele, ouvidos atentos não ao canto do sabiá, mas ao possível tic-tac fantasma de um código morse carregando a sentença dos Sabará pelo mundo. E Alice, a mensageira, teria que voltar à cidade, espreitar nas sombras, e trazer a notícia final.
Enquanto o angu engrossava no caldeirão, alimentando seus corpos, a ansiedade alimentava seus espíritos. O Arquivo das Sombras estava prestes a se tornar uma transmissão ao vivo. E eles, sentados na cozinha escura de uma benzedeira no meio do sertão, eram a audiência cativa e os protagonistas ao mesmo tempo do primeiro ato de uma revelação que pretendia mudar a história.
O grupo observava, hipnotizado pelo movimento seguro de Tonha. Naquele momento, a panela de ferro sobre o fogo era o centro do mundo. Alimentava seus corpos para a fuga que viria, e simbolicamente, cozinhava a raiva e a verdade numa mistura potente que iria alimentar sua revolta. A próxima etapa da noite — a volta de Alice à cidade para ouvir o código morse — seria perigosa. Mas primeiro, havia o angu. Primeiro, o sustento. A luta, como bem sabia Dona Tonha, se faz com o estômago cheio e o coração quente, seja pelo fogo da pimenta ou pelo fogo da justiça.
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