O retorno à casa de Dona Tonha foi feito em um silêncio tenso, mas desta vez carregado de um propósito triunfante. A confirmação de que Zé Lopes estava transmitindo era a centelha que faltava. Dentro da cabine do caminhão, Alice e Nelsinho trocaram apenas olhares significativos; as palavras pareciam supérfluas diante do rítmico tic-tac fantasma que ainda ecoava em seus ouvidos.
Ao entrarem, a cena era de expectativa contida. O grupo parou de arrumar seus poucos pertences ao ver a expressão de Alice. "Está no ar," ela anunciou, simplesmente. O alívio foi uma onda física que varreu a sala. O plano A estava em movimento.
Mas a euforia durou pouco. Madame Satã, pragmática como sempre, cortou o clima: "Bom. Agora é que o bicho vai pegar. O sinal pode ser rastreado, com tempo e equipamento. E o coronel Sabará não vai ficar sentado quando a história começar a vazar. Precisamos sumir. Agora."
A ideia de voltar para a Lapa, seu território, foi levantada e imediatamente descartada. Era o primeiro lugar onde seriam procurados. Precisavam de um lugar novo, fora do radar, onde pudessem se reagrupar, monitorar a repercussão e planejar o próximo passo.
Foi quando Paulo, quieto em seu canto enquanto afiava uma das goivas em um pedaço de couro, ergueu a cabeça. Sua voz, normalmente reservada, soou clara na sala:
"Minha família... tem uma casa. Em Paraty. É uma casa de veraneio, antiga, no morro, com vista para o mar. Fica vazia dez meses por ano. Meu avô a construiu, meu pai quase não vai. A chave fica com um caseiro, o Seu Geraldo, mas... eu sei onde ele esconde a cópia de emergência."
Todos os olhos se voltaram para ele. Paraty. Era genial. Longe o suficiente do Rio e de Minas. Uma cidade histórica, cheia de turistas e becos, onde um grupo discreto poderia se misturar mais facilmente do que no sertão. Uma casa isolada no morro seria um esconderijo perfeito.
"O caseiro é confiável?" perguntou Carlos, sempre atento aos detalhes.
"O Seu Geraldo cuidou do meu avô até ele morrer. Hoje não mora mais na casa, o filho dele, o Dirceu que vai lá uma vez na semana para limpar e ver se está tudo bem.", disse Paulo, com um toque do pragmatismo que aprendera com Madame Satã.
"Paraty..." ruminou Lucas, o escritor já vendo os cenários. "É uma cidade de entradas e saídas. Por terra e por mar. É um labirinto de pedra. Podemos ficar lá, respirar, ver o que a nossa bomba de rádio causou."
A decisão foi rápida. Era o melhor plano que tinham. Nelsinho poderia levá-los até perto da cidade, por estradas secundárias. De lá, eles entrariam a pé, de noite, e Paulo conduziria o grupo até a casa.
Dona Tonha, que observava tudo enquanto arrumava os pratos, acenou com a cabeça. "O caminho do mar é bom. Leva coisas pra longe. Limpa." Era sua bênção prática.
O preparo final foi frenético, mas silencioso. As provas mais sensíveis (o diário de Isabela, as fotografias originais) foram novamente escondidas, desta vez no forro da velha mala de Madame Satã. O restante dos pertences foi reunido. Tonha lhes deu um saco com comida para a viagem: mais angu frio (que é ainda melhor no dia seguinte, segundo ela), queijo mineiro e rapadura.
Madame Satã foi a última a sair. Na porta, ela segurou as mãos de Dona Tonha. "O silêncio da senhora vale um exército."
Tonha sorriu, seus poucos dentes brilhando ao escuro. "Minha boca só abre pra benzer e pra comer. Vão com Deus. E com os outros que andam com vocês."
O grupo embarcou no caminhão de Nelsinho mais uma vez, agora com um destino claro: a Costa Verde. A estrada que os levaria para longe do sertão assombrado e em direção ao labirinto de pedra e mar de Paraty, onde aguardariam, na casa vazia de Paulo, os primeiros ecos do terremoto que haviam desencadeado. O Arquivo das Sombras estava em trânsito, mais uma vez, mas agora a sombra que ele projetava estava se espalhando, rápida e invisível, pelas ondas de rádio do mundo.
Nelsinho foi um maestro das estradas secundárias. Evitou as principais, as que teriam bloqueios ou olhos atentos. A viagem foi longa, trocada, com paradas breves em riachos para água e para aliviar a tensão que não abandonava a cabine. O caminhão de mudanças, agora um fardo de fugitivos e segredos, parecia um animal cansado e teimoso subindo e descendo as serras que separavam Minas do litoral do Rio.
Quando o asfalto acabou e deu lugar à estrada de terra batida, poeirenta e cheia de curvas, souberam que estavam se aproximando. O ar mudou, ficou mais úmido, pesado com o cheiro salgado do mar e da vegetação densa da Mata Atlântica. A tarde do dia seguinte já clareava o céu quando avistaram, entre os morros cobertos de verde-jade, os telhados coloniais de telha capa-e-canal e o brilho cintilante da Baía de Paraty.
A estrada desembocou na periferia, longe do centro histórico. Nelsinho parou em um descampado perto de uma capelinha branca.
"Aqui é onde eu viro," ele disse, sua voz rouca pela poeira e pelas horas de silêncio. "Não posso entrar com esse caminhão no centro, chama atenção. Vocês seguem a pé por aquela trilha," apontou para um caminho estreito que sumia entre as árvores, "vai dar na Rua do Porto. De lá, se virem."
Paulo assentiu. Ele era o guia agora. Desceram do caminhão, pernas bambas, olhos ardendo. Carregavam seus fardos de fugitivos e a preciosa mala. O agradecimento a Nelsinho foi mudo, um aperto de mão forte, um olhar carregado. O gigante apenas acenou com a cabeça, ligou o motor e começou a manobrar para a volta, desaparecendo numa nuvem de poeira ocre, tão fantasma quanto surgira.
O grupo seguiu pela trilha. O som da cidade começou a chegar: o chilrear diferente dos pássaros, o som distante de vozes, o badalar de um sino. Quando emergiram na Rua do Porto, foram recebidos por uma cena que parecia de outro tempo.
Era fim de tarde. O sol dourado tingia as fachadas brancas e coloridas das casas coloniais. A maré estava baixando, recuando com um sussurro suave sobre as pedras irregulares do calçamento pé de moleque. A água salgada que, horas antes, banhara as ruas, agora escoava, revelando as pedras lisas e escuras, limpando a sujeira, levando consigo o dia. O ar cheirava a maresia, a peixe fresco, a flor de jasmim e a uma ligeira podridão doce vinda dos manguezais.
Paraty respirava uma paz antiga, mas vibrante. Uma equipe de artistas aparentemente gravava um filme com câmeras e equipamentos profissionais. Artesãos em suas portinhas coloridas vendiam peças feitas com conchas e areia. Em um bar, alguém dedilhava um violão. Era um refúgio, sim. Um lugar onde o tempo e a ditadura pareciam ter se afogado nas marés altas da história.
Mas Paulo não os deixou contemplar por muito tempo. "Vamos. A casa é no Morro do Forte. É uma subida."
Ele os levou por becos ainda mais estreitos, escadinhas de pedra, passagens entre muros altos cobertos de bougainvilles coloridas. Subiram. A cada passo, o burburinho do centro ficava mais abafado, substituído pelo som de seus próprios passos ofegantes e do canto dos grilos que começavam a anunciar o crepúsculo.
Finalmente, em uma rua de terra sem saída, com vista para os telhados da cidade e um lampejo do mar ao fundo, estava a casa. Era uma construção de madeira e pedra, simples, com varanda larga. Parecia adormecida, fundida com a vegetação que começava a tomá-la.
Paulo foi direto a um velho pé de jabuticaba ao lado da cerca. Sentou-se no chão, enfiou a mão em um buraco entre as raízes e, após um momento, puxou uma chave presa a um cordão de couro.
"É aqui," ele disse, erguendo-se e limpando a terra da chave. O som da fechadura cedendo foi como um suspiro de alívio.
A casa cheirava a mofo, a madeira velha e a ausência. Estava escura, com os móveis cobertos por lençóis brancos que pareciam fantasmas domésticos. Mas era um teto. Era segurança.
Enquanto Laura e Ana abriam janelas para ventilar, Lucas e Carlos ajudaram Paulo a descobrir os móveis principais. Madame Satã e Alice inspecionaram a casa, verificando saídas e pontos vulneráveis.
Pela janela da sala, tinham uma vista ampla. Viam a cidade se acendendo com as primeiras luzes, o contorno escuro do morro do lado oposto, e um pedaço da baía, agora escura como azeviche sob o céu que rapidamente virava índigo.
O Arquivo das Sombras tinha um novo depósito. E enquanto a maré baixava lá fora, limpando as ruas, eles sabiam que, em algum lugar do mundo, a maré de informação que haviam soltado começava a subir, implacável, em direção aos ouvidos do Coronel Sabará. A espera, agora, seria feita ao som do mar e dos grilos, no labirinto de pedra que os escondia.
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