Lucas estendeu o diário, e o gesto foi mais do que uma transferência de objeto; foi uma passagem de bastão, um ato de fé depositado nas mãos nodosas da lenda viva. Madame Satã aceitou-o com uma solenidade rara, como quem recebe um estandarte sagrado.
"Você tem mais juízo do que parece, garoto," ela disse, a voz um pouco menos rouca. "A Barbarinha sabe que segredos precisam de portadores que não sejam vistos. E estrategistas que não sejam óbvios. Nós somos os óbvios do mundo deles. Os invisíveis."
Mas a pergunta de Lucas sobre proteção fez com que Madame Satã trocasse um olhar rápido e carregado com Alice Cavalo de Pau. Um silêncio entendido passou entre os dois.
"Proteção do mundo terreno é uma coisa," falou Alice, cruzando os braços. "A gente sabe esconder, sabe dar colete, sabe de becos que nem a polícia sonha. Mas proteção de verdade... contra a má sorte, a traição, o olho gordo do poder... isso a gente busca em patrocínios mais fortes."
Madame Satã levantou-se novamente, com um gesto que indicou para o grupo segui-la. "Venham. Antes de qualquer plano, antes de tocar no mimeógrafo, vocês precisam de uma apresentação."
Ela os conduziu a uma cortina de veludo pesado e surrado, que separava a área do mimeógrafo de um cômodo ainda mais recuado do porão. Ao puxá-la para o lado, revelou um espaço pequeno, íntimo, iluminado apenas por várias velas vermelhas e pretas em garrafas.
O ar aqui era diferente: denso, adocicado pelo cheiro de mel, tabaco forte e um fundo de cachaça. Na parede principal, sobre uma mesa forrada com um pano de algodão branco e rendas, havia um altar improvisado, mas de uma potência visual que fez todos pararem.
À esquerda, dominando o espaço, estava a figura de Zé Pilintra. Uma imagem de madeira vestido impecavelmente de malandro clássico: terno branco levemente amarelado pelo tempo, chapéu panamá inclinado para o lado, lenço vermelho no pescoço e um charuto na boca esculpida em um sorriso travesso. Aos seus pés, uma garrafa de cachaça, um maço de cigarros e algumas moedas.
À direita, em equilíbrio perfeito, estava a representação de Maria Navalha. O chapéu Panamá, elegantemente inclinado, adornado com uma rosa vermelha de seda um pouco empoeirada, dava-lhe um ar de majestade perigosa. E no cinto simples preso à sua coxa, as pequenas navalhas estavam alinhadas como dentes de prata, prontas para serem desembainhadas. Ao lado, um copo de cristal com cerveja e uma rosa vermelha, já murchando nas bordas.
Madame Satã ficou de frente para o altar, sua postura mudando para algo entre o respeitoso e o familiar.
"Esse é o nosso quartel-general espiritual," ela disse, sem virar-se. "Zé Pilintra, o malandro celestial, o que abre caminhos e desvia balas. E Maria Navalha, a justiceira, a que corta as mentiras e protege os que lutam na sombra. Eles são os guardiões desse lugar. E, se vocês tiverem coragem e respeito, podem ser os guardiões de vocês também."
Alice se aproximou, sua voz mais suave. "Na Lapa, a gente sabe que o mundo visível é só a metade da história. Para lutar contra um poder que não tem vergonha, às vezes você precisa de aliados que não têm medo. Esses dois... eles entendem de sobrevivência. Entendem de justiça de um jeito que os tribunais nunca vão entender."
Madame Satã virou-se para encarar o grupo. Seu rosto estava sério, sem nenhum traço da performatividade habitual. "Isso não é brincadeira. Não é superstição de gente ignorante. É um pacto. Vocês pedem a proteção deles, mas têm que viver de um jeito que honre essa proteção. Ser leal ao grupo. Não vacilar por medo. E, quando a justiça vier — a nossa justiça, não a deles —, vocês têm que estar prontos para fazer o que for necessário. Zé Pilintra abre a porta, mas Maria Navalha exige coragem para passar por ela. Entendem?"
Lucas olhou para o altar. A fé, para ele, sempre fora uma coisa abstrata, ligada à política, ao futuro. Aquilo era diferente. Era uma fé visceral, enraizada na sobrevivência das ruas, nas entranhas da cidade. Sentiu um frio na espinha, mas também um calor estranho no peito. Ana estava hipnotizada pelas lâminas de Maria Navalha. Laura olhava para Zé Pilintra com um reconhecimento imediato, como se visse um aliado nato.
"Como fazemos?", perguntou Lucas, sua voz um pouco rouca.
Madame Satã pegou um copo de cachaça que estava ao lado do altar. "Primeiro, com sinceridade. Digam seus nomes. Digam o que querem. E peçam. Não para si mesmos, mas para a luta. Para a verdade que carregam. Depois...", ela estendeu o copo para Lucas, "...vocês compartilham o que ele oferece. É o primeiro passo."
Um a um, sob o olhar das duas lendas terrenas e das entidades do altar, os cinco jovens se apresentaram. Lucas, Ana, Laura, Paulo, Carlos. Falaram de seus pais sumidos, de seus amigos presos, do medo que os fizera correr, da esperança que ainda os mantinha de pé. Pediram força. Pediram astúcia. Pediram proteção para levar adiante o segredo que lhes foi confiado.
Lucas tomou o primeiro gole da cachaça. O líquido queimou descendo, mas deixou uma sensação de calor e coragem. Passou o copo para Ana. E assim foi, em um ritual silencioso, selando um pacto não só com Madame Satã e Alice, mas com as próprias entranhas espirituais da resistência carioca.
Enquanto o copo de cachaça passava de mão em mão e os nomes eram sussurrados no ar pesado do altar, o rosto de Carlos era um estudo à parte. Enquanto os outros demonstravam um temor reverencial ou uma curiosidade intensa, seus olhos percorriam as figuras com um reconhecimento íntimo, quase familiar.
O terno branco de Zé Pilintra, o charuto, o sorriso malandro... aquilo não era lenda abstrata para ele. Era a presença sutil na porta do bar, na conversa dos mais velhos após o trabalho, no toque do atabaque que vinha do terreiro da Tia Maria da Serrinha nas noites de sexta-feira. Era a entidade que abria caminhos para quem não tinha caminho aberto. E Maria Navalha, em seu vermelho e branco afiados, ele não conhecia dos terreiros, mas reconhecia nela a mesma essência: a justiça que não vem de livros, mas do fio da lâmina e da coragem de quem a empunha.
Quando o copo chegou em suas mãos, ele não hesitou. O primeiro gole da cachaça barata não o fez tremer. Ao contrário, sentiu um calor que era diferente do álcool – era o calor do reconhecimento. Enquanto os outros pediam proteção ou coragem, Carlos, baixando a cabeça diante das figuras, pensou com uma clareza ferrenha: “Me dêem a malandragem para usar a lei deles contra eles. Me dêem o corte preciso para separar a hipocrisia da verdade. Eu vim da lata do lixo dos ricos para a sala de aula deles. Agora me levem do porão deles até o tribunal.”
Ele não disse isso em voz alta. Mas ao erguer a cabeça e encontrar o olhar de Madame Satã, viu nela um brilho de entendimento. Ela, que também navegava entre mundos, viu no rapaz magro e de olhos inteligentes mais do que um estudante assustado. Viu um estrategista em potencial.
Ao saírem do cômodo escuro, deixando a fumaça e a presença das entidades para trás, foi Carlos quem soltou um suspiro que era quase um alívio vitorioso. Um sorriso discreto, mas profundo, curou seus lábios. Enquanto os outros ainda carregavam o peso solene do ritual, ele carregava uma leveza nova, uma certeza antiga renovada.
Ele, que estudara Direito com livros resgatados do lixo, que enfrentava o olhar atravessado de professores e colegas todos os dias, que sustentava a esperança da mãe e dos irmãos, agora tinha algo que nenhum deles naquela sala da UFRJ teria: um patrocínio das sombras. Não era uma arrogância vazia. Era a sensação concreta de ter encontrado suas raízes no lugar mais inesperado, e descobri-las mais fortes e mais afiadas do que qualquer diploma.
Madame Satã pousou uma mão pesada em seu ombro, quebrando seu devaneio. “Você conhece o jogo, não é, filho?” disse ela, não perguntando, afirmando. “Conhece a lei de lá de cima e a lei daqui de baixo.”
Carlos apenas assentiu, o sorriso ainda nos olhos. “Conheço o abismo entre as duas, Dona João. E conheço a ponte.”
Alice Cavalo de Pau riu, um som de apreciação. “Esse aí vai longe. A Barbarinha tem bom faro mesmo.”
Lucas observou a troca, e uma nova compreensão iluminou seu rosto. Eles não eram mais apenas cinco amigos unidos pela dor. Eram uma célula com habilidades complementares: sua própria escrita, a fúria sagrada de Laura, a determinação prática de Ana e Paulo, e agora, a mente jurídica e a conexão espiritual de Carlos, firmada na resistência cultural mais profunda do Rio.
“Então,” disse Madame Satã, esfregando as mãos e se dirigindo à mesa do mimeógrafo, o momento de mistério dando lugar à conspiração prática, “vamos fazer esse segredo valer cada gota de cachaça e cada centímetro de lâmina. Carlos, você vai ser crucial. Porque saber onde uma prova é aceitável e onde ela é apenas uma arma… isso faz toda a diferença.”
E pela primeira vez desde que a noite começara, Carlos sentiu-se não como um sobrevivente, mas como um arquiteto. O plano começava a tomar forma, e ele, o garoto da Serrinha, tinha um lugar fundamental em sua fundação.
Quando o último gole foi dado, Madame Satã acendeu um charuto no fogo de uma vela e deixou-o ao lado de Zé Pilintra. A fumaça subiu em espirais lentas, misturando-se ao aroma do tabaco, da cachaça e da cera.
"Agora," ela disse, virando-se com decisão, o momento de transcendência dando lugar à ação terrena, "vocês têm não só um segredo. Têm um patrocínio. E nós temos um trabalho. Vamos ao plano."
Ela soprou as velas do altar, uma a uma, deixando apenas a fumaça do tabaco e da cachaça pairando no ar. Ao saírem do cômodo, os jovens sentiram algo diferente. Talvez fosse sugestão. Talvez fosse o álcool. Ou talvez, de fato, uma presença mais antiga e afiada agora os observava, dos cantos escuros do porão.
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