domingo, 14 de dezembro de 2025

O Arquivo das Sombras: 1968 (Parte XXVII)

Rafael entrou em um corredor de serviço mal iluminado e com cheiro de detergente e mofo, seguido por Ana.

A cena foi de uma tensão que poderia ter explodido em violência. O abraço de Rafael foi rápido, mas intenso — um misto de alívio por vê-la viva e terror pelo perigo em que ela estava.

"Estão usando os encontros marcados como isca," Rafael sussurrou, os olhos escaneando o corredor mesmo enquanto falava. "Montaram uma operação. Querem limpar a área antes da Regata, sumir com qualquer um ligado a grupos de oposição. E querem pegar os contatos internacionais, os comunistas."

Foi nesse momento que Paulo entrou no corredor, silencioso como uma sombra. Rafael se separou de Ana num movimento brusco, sua mão indo instintivamente à cintura, onde a forma de uma pistola se delineava sob a camisa. Seu rosto, já marcado pela tensão, endureceu em uma máscara de alerta máximo.

"Para! Não atira!" a voz de Ana saiu cortante, um sussurro carregado de autoridade. "Ele é dos nossos. É Paulo."

Rafael congelou, a mão ainda pairando sobre a arma, seus olhos saltando do rosto assustado mas determinado de Paulo para o de Ana. A informação processou-se. "Dos nossos" não significava da família. Significava da resistência. Significava que sua irmã estava muito mais profundamente envolvida do que ele imaginava — ou temera.

Paulo manteve as mãos visíveis, afastadas do corpo, num gesto de não ameaça. "Estou com ela," ele confirmou, sua voz calma contrastando com o ritmo cardíaco acelerado. "Somos um grupo. Estamos sendo caçados."

Rafael engoliu em seco. O mundo dele, de disciplina, hierarquia e lealdade à corporação, colidia brutalmente com a realidade diante dele: a irmã que ele jurou proteger era uma fugitiva, e o "inimigo subversivo" era um garoto que parecia mais assustado do que ameaçador. A operação da qual ele fazia parte — uma operação de infiltração e captura — tinha como alvo, inadvertidamente, sua própria família.

"Vocês não podem ficar aqui. Este lugar está cercado. Há homens meus posicionados, mas... há outros. Do DOI. Eles não sabem que eu sou o contato, acham que eu sou só a isca militar. Se eles te virem comigo..." Ele não precisou terminar. "Tem que sair. Agora. Por onde vocês vieram?"

"Tem um vigia do lado de fora, no saguão," disse Paulo, rápido. "E temos um barco, uma rota. Mas precisamos voltar para a comunidade. Para os outros."

Rafael fechou os olhos por um segundo, uma batalha interna visível em seu rosto. Lealdade ao Exército? À missão? Ou à irmã que segurava com tanta força, como se fosse a menina que ele protegia nos playgrounds?

Quando abriu os olhos, a decisão estava tomada. O irmão falou mais alto que o soldado.

"Vamos. Eu levo vocês até a saída dos fundos, pela área de carga. Meus homens vão distrair os outros. Mas depois... depois eu não posso ir com vocês. Se eu sumir, vão saber. Vão atrás de mim, e de vocês." Ele olhou para Ana, uma dor profunda em seus olhos. "Você entende, Ana? Eu tenho que ficar."

Ana entendeu. Era a linha que ele não podia cruzar sem condenar todos. Ela assentiu, as lágrimas teimosamente contidas. "Obrigada, Rafa."

"Vamos," ele ordenou, reassumindo por um instante o tom de comando. "E, Ana...", ele a fitou, uma última ordem, um último pedido. "Some. Some de verdade. E não confie em ninguém."

Guindados pelo momento, os três se moveram. Rafael na frente, Ana no meio, Paulo fechando a retaguarda. O encontro que deveria unir a resistência tornara-se, em vez disso, um resgate familiar improvisado no coração da armadilha, conduzido por um soldado que acabara de escolher seu lado no meio do fogo cruzado. Mas Ana quis lhe contar porque estava ali.

O instinto de Rafael era de puro e simples fuga. Cada segundo no aeroporto era um risco mortal. Mas a determinação no olhar de Ana, a mesma teimosia que ele via desde que ela era criança, o fez hesitar.

"Ana, não há tempo para histórias!", ele sussurrou, urgente, puxando-a gentilmente pelo braço.

"É mais importante que o tempo, Rafa!" ela retrucou, segurando-se no lugar. "É a razão de tudo. É o que pode mudar isso." Seus olhos queimavam com uma convicção que ele nunca vira nela. "Os Sabará. O coronel Sabará, do DOI."

O nome fez os olhos de Rafael se estreitarem. Ele conhecia o nome. Um homem poderoso, temido, um dos pilares da repressão na capital.

"O que você tem?", perguntou ele, a voz ainda baixa, mas agora carregada de uma curiosidade profissional e pessoal.

Ana falou rápido, em um sussurro febril, enquanto Paulo vigiava a entrada do corredor. Ela mencionou os diários de Bárbara, o assassinato do italiano, o avô ladrão e assassino. Mas focou no núcleo da bomba: "O pai dele, Rafa. O Augusto. Ele foi roubado. Roubado da mãe dele, uma mulher chamada Isabela, que foi torturada e trancada em Barbacena pelo próprio marido. O coronel Sabará é herdeiro de um sequestro e de uma fortaleza construída sobre a tortura de uma mulher. Temos fotos. Temos a confissão da avó dele, por escrito."

As palavras ecoaram no corredor sujo. Rafael ouviu, e algo mudou em seu rosto. Não era mais só o soldado ou o irmão. Era um homem que acreditava, em algum nível profundo, em honra. E a história que Ana contava era a antítese da honra. Era a podridão absoluta, a prova de que um dos símbolos da "ordem" que ele servia era construído sobre o alicerce mais criminoso e covarde imaginável.

"Onde estão essas provas?", ele perguntou, sua voz agora um fio de aço.

"Seguras. Com o resto do nosso grupo. Mas podemos copiar. Podemos fazer chegar a... a pessoas certas. Dentro e fora." Ela o encarou, implorando não por salvação, mas por aliança. "Você pode ajudar. Você sabe por onde as coisas circulam. Sabe quem é confiável. Quem tem medo de um escândalo assim."

Rafael respirou fundo. O risco era monstruoso. Era traição. Era o fim de sua carreira, talvez de sua liberdade. Mas a imagem que Ana pintou — do coronel, o herdeiro de um torturador e sequestrador de crianças, dando ordens para "limpar" o país — era insustentável. Era a mentira fundamental que tornava toda a sua luta, todo o sacrifício daqueles que ele caçava, em uma farsa ainda maior.

"Você tem certeza? Absoluta certeza?"

"Temos tudo. Diários, fotos, documentos oficiais. É verdade, Rafa."

Ele olhou para Paulo, que assentiu firmemente.

"Então não vamos só fugir," disse Rafael, uma decisão fria se apoderando dele, substituindo o pânico inicial pelo cálculo tático de um militar. "Vamos virar o jogo. Mas para isso, vocês precisam sumir agora. Eu vou confundir a operação aqui. Vou dar um jeito de avisar meus homens para não intervirem na sua saída. Vocês voltem para onde estão escondidos e fiquem lá. Não se movam. Eu... eu vou entrar em contato."

"Como?", perguntou Ana.

"Deixe comigo. Agora, vão." Ele apontou para uma porta de metal no fim do corredor. "Saída de emergência. Leva para os fundos do pátio de cargas. Virando à esquerda tem uma cerca com um buraco. É por ali."

Ele deu um último e longo olhar para a irmã, uma mistura de medo, admiração e resignação. "Contem com uma janela de trinta minutos. Depois disso, o cerco fecha. Agora, corram."

Ana não discutiu. Aperto rápido no braço do irmão, um olhar que dizia mais do que palavras, e então ela e Paulo se viraram e correram em direção à porta de metal, sumindo na penumbra. Rafael ficou para trás, sozinho no corredor, a respiração pesada. Ele tinha acabado de cruzar uma linha da qual não havia volta. Em trinta minutos, ele teria que enganar seus superiores, proteger sua irmã e começar a traçar um plano para usar a arma mais explosiva que já vira: a verdade suja no coração do poder.

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