A história de Laura é forjada no aço frio do desprezo e na solidão afiada de quem aprendeu a ler o mundo através de suas rachaduras. Seu pai, o Dr. Álvaro, não era um vilão caricato; era um fantasma de terno caro. Um advogado tributarista que navegava nas águas turvas entre grandes corporações e a máquina estatal, com escritório no Centro do Rio e um apartamento vazio em Ipanema. A separação da mãe foi menos um rompimento e mais um desinvestimento emocional quando ela trocou o status de esposa de advogado pelo escândalo de ser amante de um deputado corrupto.
Desde os 16 anos, a casa de Laura foi um apartamento silencioso onde a única prova de vida paterna era o extrato bancário. A mesada era generosa, mas era um salário pelo esquecimento. Ele comprava sua ausência, e ela, com frieza precoce, aprendeu a gastá-lo em livros, em cursos, em uma independência amarga.
Sua mãe, Clarice, escolheu o exílio dourado na Itália após o deputado cair em desgraça, levando consigo os restos de um glamour podre. Laura ficou. Ficou com o silêncio, com a mesada e com a permissão tácita para vasculhar a biblioteca do pai.
Foi lá que ela encontrou seu verdadeiro tutor: os processos. Pasta após pasta, ela lia os detalhes sórdidos de esquemas de sonegação, de conluio, de corrupção elegante travestida de legalidade. Aprendia que a lei, nas mãos de seu pai e de seus clientes, não era um código de justiça, mas um manual de evasão, um instrumento para proteger a riqueza e perpetuar o poder. A hipocrisia não era um defeito do sistema; era seu combustível principal.
Essa descoberta não a entristeceu; enfureceu-a. Uma fúria branca, silenciosa e precisa, como o corte de um diamante. Ela não queria chorar sobre a injustiça; queria esmiuçá-la, catalogá-la e expô-la. O Jornalismo, na Faculdade de Comunicação da UFRJ, não foi uma escolha profissional, mas uma declaração de guerra. Ela queria a caneta mais afiada para dissecar a podridão que seu pai ajudava a mascarar.
Foi no coração dessa guerra pessoal que ela conheceu Lucas. Não em uma sala de aula, mas em uma assembléia estudantil, onde ele lia um texto incendiário sobre a censura. A voz dele não era a de um teórico, mas a de um escritor de trincheira, alguém que também acreditava no poder explosivo das palavras. Ele via a beleza na luta; ela, a sujeira a ser varrida. Eram lados da mesma moeda.
O amor por Lucas brotou no segredo mais profundo de Laura, tão bem guardado quanto sua raiva. Era uma vulnerabilidade que ela não podia permitir, um ponto cego em sua armadura de desconfiança. Ajudá-lo com os cartazes, correr com ele na noite da perseguição, foi tanto um ato político quanto um ato de entrega silenciosa e temerária.
O medo dela, agora, não é apenas por si mesma. É uma equação complexa: se for descoberta, a carreira impecável do Dr. Álvaro — que sobrevive à base de discrição e conexões — pode ruir. A vingança do regime poderia atingi-lo não por ser um opositor (que nunca foi), mas por ser o pai de uma. Seria a ironia final: o homem que lucrava com o sistema sendo esmagado por ele, por um laço de sangue que ele sempre tratou como transação bancária.
E há o amor secreto por Lucas, que na casa de Paraty, no escuro do esconderijo, quase se materializou em um toque, em um olhar prolongado. Mas Laura recua. A fúria é um escudo mais confiável do que o afeto. Ela luta para expor a podridão dos Sabará não só por justiça, mas para provar a si mesma — e ao fantasma do pai — que a verdade, por mais suja, é uma arma mais poderosa que todos os contratos e conluios do mundo.
Laura é a cronista da ira. Ela não carrega apenas o peso do Arquivo das Sombras; carrega o arquivo inteiro de sua própria vida, uma coleção de decepções e desprezos que agora canaliza para um objetivo claro: fazer com que a história dos poderosos, por uma vez, seja contada com a tinta da vergonha que eles merecem. E, no fundo, talvez escreva uma nova história para si mesma, onde ela não é a filha esquecida do Dr. Álvaro, mas Laura, a que não se calou.
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