terça-feira, 9 de dezembro de 2025

O Arquivo das Sombras: 1968 (Parte XX)

 Ao chegar na cidade Nelsinho disse aos passageiros para entrarem no baú. Sem entender muito bem, eles entraram e se ajeitaram entre colchões e móveis desmontados.

A manobra de Nelsinho foi uma aula prática de infiltração. Dentro do baú escuro e abafado, abarrotado de colchões velhos que cheiravam a mofo e poeira, o grupo mal conseguia respirar, muito menos entender. O caminhão parou. Uma voz autoritária e entediada do lado de fora: "Entrega de colchões, é? Tá na lista não. Vê com a administração no portão principal."

"Pois não, doutor, deve ter um engano na papelada," a voz calma e pacata de Nelsinho respondeu, o tom perfeito do caminhoneiro cumpridor. "A gente dá uma volta, desocupa a frente."

O caminhão andou mais alguns metros, devagar, e parou novamente. Desta vez, o silêncio foi absoluto, apenas o tique-taque do motor esfriando. Então, três batidas firmes na lateral de metal: BUM. Bum-bum.

A porta do baú foi aberta, inundando o espaço com a luz cinzenta e fraca do amanhecer em Barbacena. Nelsinho estava lá, seu rosto de boi impassível. "Chegamos. Aqui é a entrada de carga dos fundos. É por onde entra lenha, comida, essas coisas. À essa hora, tem um vigia só, e ele tá mais preocupado em acabar o turno e tomar café."

Ele ajudou todos a descerem, rápido. Estavam em um pátio de serviço calçado com lajes de cimento com ervas daninhas crescendo pelas frestas, sujo, cercado por muros altos. À frente, a monstruosidade arquitetônica do Hospital Colônia de Barbacena se erguia, seus pavilhões intermináveis e janelas quebradas remendadas com madeira, parecendo olhos cegos.

"Os garotos," Nelsinho disse, apontando para Lucas, Carlos e Paulo, "me ajudam a fingir que vamos descarregar esses colchões velhos. Empurram, arrastam, fazem barulho. Dá uns dez minutos de distração." Ele olhou para Madame Satã, Alice, Laura e Ana. "Vocês. Atrás daquela pilha de lenha, tem uma porta de serviço que nunca fecha direito. Entram lá, se escondem no primeiro depósito de limpeza que acharem. É fedido, mas é seguro. De noite, a gente age."

Não houve tempo para dúvidas ou medos. A precisão das instruções de Nelsinho era hipnótica. Os homens começaram a arrastar os colchões pesados e empoeirados do caminhão, fazendo um ruído terrível. Nelsinho berrava instruções aleatórias: "Cuidado com a quina, moleque! Puxa pra lá! Esse vai pro depósito de reforma!"

Sob o disfarce do alvoroço, as três mulheres deslizaram como sombras pela pilha de lenha empilhada sob um telheiro. A porta de madeira, realmente, estava com o trinco enferrujado e entreaberta. Um cheiro forte de cloro, mofo e algo indescritivelmente amargo saía de dentro. Ana sentiu o coração saltar para a garganta. Era o cheiro do pesadelo de Isabela.

Elas entraram. O corredor era estreito, escuro, forrado de azulejos brancos sujos até a metade da parede. A primeira porta à direita estava entreaberta. Era um depósito apertado, com baldes, vassouras, panos velhos sujos, sacos de cal e um fedor enjoado de desinfetante barato e umidade. Entraram e fecharam a porta, ficando na escuridão total, ouvindo apenas a própria respiração ofegante e o eco distante dos gritos de Nelsinho do lado de fora.

Estavam dentro. No ventre da besta. A busca pela caixa marrom com letras azuis, e pela última verdade de Isabela Sabará, começava ali, naquele cubículo imundo, sob o risco desesperador de serem descobertas. A noite, quando chegasse, traria a cobertura das sombras. E a chance de cavarem no porão do manicômio, onde as raízes da indignação feminina estavam enterradas.

A espera no depósito de limpeza foi uma tortura sinestésica. As horas rastejaram, marcadas pelo gotejar de uma torneira defeituosa em algum lugar do corredor e pela mudança na luz que entrava pelas frestas da porta, do cinza do dia para o azul-escuro do crepúsculo. Foi quando os sons começaram.

Primeiro, um gemido longo e arrastado, vindo de alguma ala distante. Depois, um grito agudo e desesperado que cortou o ar como vidro quebrado: "Mãe! Ele tá vindo! Ele tá vindo!" O choro se seguiu, um soluçar infantil e perdido. Batidas rítmicas e monótonas contra o metal de uma porta ou grade. BUM. BUM. BUM. O som de um tapa seco, seguido de um grito abafado e uma ordem masculina, rouca e irritada. Uma voz cantarolando uma canção de ninar de forma assustadoramente desconexa. Um riso agudo, histérico, que durava minutos e depois se transformava em pranto.

Era um coro do inferno. Cada som era uma pontada de agulha na sanidade de quem ouvia, escondido no escuro. Ana apertou os olhos, tentando bloquear os ruídos, mas eles entravam pelos poros. Laura encostou a testa na parede fria, os punhos cerrados tão forte que doíam. Lucas mordia o lábio até sangrar. Carlos rezava silenciosamente, não para um deus específico, mas para que aquilo acabasse. Paulo tentava focar na textura áspera de um saco de cal, qualquer coisa para se ancorar na realidade física.

Os sons eram a prova viva, auditiva, do horror que haviam lido nos documentos. Isabela não era uma anomalia. Era uma nota em uma sinfonia de dor. O manicômio era uma máquina de triturar almas, e eles estavam ouvindo seus dentes de metal rangendo.

Madame Satã e Alice eram as únicas que pareciam imunes, suas expressões endurecidas como pedra no escuro. Mas mesmo em Madame Satã, os olhos brilhavam com uma fúria glacial, uma fúria antiga e familiar.

Então, lentamente, os gritos começaram a diminuir. O choro se transformou em um soluço intermitente, depois em silêncio. As batidas nas portas ficaram mais fracas, mais espaçadas, até cessarem. O ar pesado, que antes vibrava com a agonia, começou a ficar opressivamente quieto.

Os "sedativos" distribuídos como ração no jantar. A química do silêncio forçado.

Quando a última réstia de luz desapareceu e a escuridão se tornou absoluta, o hospital estava em paz. Uma paz de cemitério, profunda, carregada e aterrorizante.

Madame Satã foi a primeira a se mover. Ela abriu a porta do depósito um centímetro. O corredor estava escuro, iluminado apenas por algumas lâmpadas fracas de emergência a cada vinte metros, que lançavam poças de luz amarelada e doentia no chão de azulejos.

"É hora," ela sussurrou, sua voz soando alta demais no silêncio sepulcral. "O porão. Lembrem-se: andem como sombras. Sem som. Sem luz, a menos que seja absolutamente necessário. Ana, você lidera. O sonho é seu."

Ana engoliu em seco. O cheiro de rosas do sonho parecia um fantasma distante, aniquilado pelo fedor real de cloro e desespero. Mas a imagem da caixa marrom com letras azuis estava queimada em sua mente.

Ela saiu para o corredor, os outros formando uma fila indiana atrás dela. O silêncio era tão espesso que podiam ouvir o próprio sangue correndo nas orelhas. Passaram por portas fechadas atrás das quais, sabiam, seres humanos estavam quimicamente subjugados, presos em pesadelos farmacológicos.

Encontraram uma escada de serviço, de concreto cru, que descia para as profundezas do edifício. O ar ficou ainda mais frio e úmido, carregado com o cheiro de terra, mofo e algo metálico, como ferrugem velha.

O porão era um labirinto de corredores baixos, com tubulações expostas e pilhas de coisas cobertas por lonas. A lanterna fraca de Alice, coberta por um pano para reduzir o feixe, varria o ambiente, criando sombras que se contorciam como criaturas.

E então, Ana viu. No final de um corredor lateral, atrás de uma pilha de arquivos mofados que haviam sido jogados fora, havia uma porta baixa de madeira, quase uma tampa.

"Lá," ela sussurrou, um fio de voz.

Forçaram a porta, que rangiu protestando. O espaço atrás era pequeno, um cubículo de armazenamento esquecido. E ali, empilhadas contra a parede de tijolos à vista, estavam várias caixas de arquivo, empoeiradas e com as tampas desbotadas pelo tempo.

A lanterna de Alice percorreu as etiquetas. "Registros Administrativos - 1890-1910". "Contabilidade - Pavilhão 3". E então, na prateleira mais baixa, uma caixa de papelão marrom, mais robusta que as outras. A etiqueta, manuscrita em tinta nanquim azul, já bastante desbotada, dizia:

"Processos Clínicos - Permanentes - Feminino (A-D) - 1898-1905"

O coração de Ana parou. Permanentes. Isabela Costa Sabará foi internada em 1901. Seu processo estaria ali.

"É essa," Ana disse, a voz trêmula de emoção. "A caixa marrom. Com letras azuis."

Carlos e Lucas, com cuidado de arqueólogos, puxaram a caixa pesada. Ao abrirem a tampa, uma nuvem de poeira ácida subiu, fazendo todos tossirem baixinho. Dentro, pastas de papel pardo, amarradas com barbante, em ordem alfabética.

As mãos de Ana tremeram ao passar pelos nomes. Almeida, Carvalho, Dias... E então:

Sabará, Isabela Costa.

Ela puxou a pasta. Era mais grossa do que esperava. Ao abri-la, não havia apenas o relatório de internação. Havia cartas. Cartas rabiscadas em pedaços de papel de embrulho, em folhas arrancadas de livros. Cartas escritas com carvão, com sangue, com tinta feita de fuligem. Cartas de Isabela, tentando comunicar-se com o mundo lá fora. Cartas interceptadas, nunca enviadas, arquivadas como "prova de delírio".

Em uma delas, datilografada de forma desigual, com várias palavras riscadas e reescritas à mão com fúria, estava a verdade que buscavam:

"Ele me bateu porque me recusei a receber sua amásia amante em nossa casa como se fosse uma visita. Disse que eu era louca por ciúmes. Queimou meu olho com café fervente. Chamou os médicos, amigos dele, e disse que eu tinha ataques, que era perigosa, que eu me queimei sozinha. Eles assinaram o que ele quis. A única loucura aqui é a dele, e a de um mundo que dá a um homem desgraçado o direito de trancar sua mulher por se recusar a ser uma prostituta qualquer cúmplice de sua indecência. Se um dia esta carta for lida, saibam: Geraldo Sabará não é um marido. É um maldito violento carcereiro. E este hospício é sua masmorra particular."

Era a prova final. A confissão da vítima, em sua própria voz, amarrando a violência doméstica ao complô médico e à internação forçada. Mais poderosa que qualquer relatório.

Ana segurou a carta, as lágrimas escorrendo silenciosamente por seu rosto, misturando-se à poeira secular. Tinham encontrado Isabela. E Isabela, finalmente, teria justiça.

Nenhum comentário:

O Arquivo das Sombras: 1968 (Parte XXV)

A escuridão no porão do barco era úmida, salgada e impregnada com o cheiro rançoso de peixes secos, óleo de motor e água do mar. O espaço er...