segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

O Arquivo das Sombras: 1968 (parte IV)

As batidas cessaram. Os passos pesados se afastaram, misturando-se ao som distante de uma viatura que acelerava, rumo ao morro da Providência. Um alívio tenso, como o fio de uma faca afrouxando contra a garganta, tomou conta do pequeno grupo. A única luz ainda era a da vela, que agora ardia com uma chama mais calma, quase doméstica.

Foi então que Ana se adiantou. Seus olhos, que momentos antes estavam arregalados de terror, agora brilhavam com uma admiração intensa, quase devota, fixos na figura envolta em seda escarlate.

"Eu lhe admiro," a voz de Ana saiu baixa, mas clara, cortando o silêncio carregado. "Admiro sua coragem, sua história, sua ousadia. De ficar aqui. De conhecer os segredos todos. De nunca ter ido embora." Ela engoliu seco, buscando as palavras certas. "Eu gostaria muito de ser como você, Bárbara."

A declaração ecoou na sala. Laura franziu a testa, olhando para a amiga com preocupação. Paulo e Carlos trocaram um olhar de incredulidade. Lucas, ainda segurando o pesado diário negro, ergueu os olhos, sentindo um frio diferente percorrer sua espinha.

Bárbara dos Prazeres não respondeu imediatamente. Ela estudou Ana com uma expressão que era difícil de decifrar — uma mistura de curiosidade, pena e um profundo cansaço secular. Seus lábios pintados se curvaram em algo que não era exatamente um sorriso.

"Ser como eu, querida?" Ela finalmente falou, a voz um fio de mel e absinto. "Você diz isso porque vê a liberdade. Vê o poder. Vê a mulher que não se curvou, que fez dos desejos dos homens sua arma e seu reino." Ela fez um gesto leve, abarcando as paredes úmidas, os livros poeirentos, o ar parado. "Você não vê a gaiola."

Ana abanou a cabeça, fervorosa. "Mas é uma gaiola que você comanda! Você não teme os soldados, os coronéis, o tempo! Você sabe das coisas. Você pode mudar as coisas, como vai nos ajudar a mudar." Seu gesto indicou o diário na mão de Lucas.

Bárbara deixou escapar uma risadinha suave, sem humor. "Mudar? Oh, minha flor revolucionária. Eu não mudo o curso dos rios. Apenas recolho o que afunda em suas margens. Há mais de um século, homens poderosos vinham até mim para fugir de si mesmos. E em troca, deixavam pedaços de suas almas aqui, nessas páginas." Ela tocou a lombada do livro de visitas, onde a história de Lucas agora residia. "O poder que você vê não é para fazer história. É para presenciá-la. Eterna, repetitiva, cruel."

Ela se aproximou de Ana, e o perfume doce ficou mais forte, quase intoxicante. "Você quer ser como eu? Deseja ser uma sombra? Uma entidade que vive do eco das dores alheias, que se alimenta de verdades confessadas à beira do abismo? Que assiste, década após década, regime após regime, à mesma coreografia de opressão, só com figurinos diferentes?"


Bárbara ergueu uma mão pálida e quase translúcida na luz fraca. "Você tem sangue quente nas veias, Ana. Tem o cheiro da rua, do suor, da luta que é agora. Eu... eu cheiro a pó, a flores murchas, a promessas esquecidas. Ser como eu é desistir do sol. É aceitar que seu único ato de rebeldia será... persistir. Nunca ir embora, mas também nunca mais chegar a lugar algum."

Ana parecia um pouco atordoada, mas não convencida. "Mesmo assim... ter essa força. Não ser... ignorada. Não ser varrida."

"Ah, mas eu fui varrida," Bárbara retrucou, seu olhar ficando distante. "Varrida da história oficial. Lembrada apenas em sussurros de bordel e contos de assombração. O que resta é isto. Este nicho. Este último refúgio que só os verdadeiramente perdidos — ou desesperados — conseguem encontrar." Seu olhar voltou a Lucas, ao diário. "Eu os ajudo não porque acredito que vão derrubar um regime. Mas porque sua luta, seu fogo, é real. E coisas reais são raras e preciosas neste meu mundo de ecos. Sustentam-me. Lembram-me de quando eu também tinha sangue quente."

Ela se afastou, voltando para sua poltrona, como se o simples ato de falar tanto a tivesse exaurido.

"Guarde sua admiração para seus companheiros, Ana. Para sua própria coragem de estar na rua, com cartazes e gritos, sob a luz do dia — e das balas. Ser um fantasma é um consolo muito solitário para uma alma como a sua."

Bárbara reclinou a cabeça, fechando os olhos por um segundo. A aurora verdadeira começava a clarear as frestas mais altas da sala, trazendo um cinza frio que contrastava com o âmbar da vela.

"O dia chega," ela disse, sem abrir os olhos. "Em breve, a porta se abrirá para a Travessa do Comércio de 1968. Vocês terão que escolher o que fazer com o segredo que lhes dei. E eu... voltarei a esperar."

Ela não era uma heroína. Era uma arquivista do lado sombrio da história. E Ana, naquele momento, compreendeu a diferença — uma diferença que trazia um alívio amargo, mas também uma nova determinação. Sua luta era entre os vivos. E isso, percebeu, era um privilégio.

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