domingo, 14 de dezembro de 2025

O Arquivo das Sombras: 1968 (Parte XXVI)

Pela manhã, o rangido familiar da escada de madeira anunciou Seu Nato. Ele trazia um punhado de raízes de aipim, terra ainda grudada na casca grossa, colhidas da horta comunitária que mantinham em um terreno mais alto. Sem dizer muito, sentou-se no degrau da varanda, pegou uma faca curta e começou a descascá-las com movimentos precisos e econômicos. A casca marrom caiu, revelando a polpa branca e farinhenta. Cortou tudo em pedaços grossos e os colocou em uma panela de alumínio com água salgada, já posta sobre o fogão a lenha que começava a crepitar.

Enquanto o aipim cozinhava, ele vasculhou um armário baixo e tirou uma lata antiga decorada com mimo. Dentro, guardado como um tesouro, havia um saco de pano amarrado com barbante, contendo um punhado de pó de café torrado na própria comunidade. Com um cuidado quase ritualístico, preparou o coador de pano, despejou a água fervente, e o aroma denso e amargo do café caseiro começou a disputar o ar com a fumaça da lenha.

Quando o aipim estava macio, ele escorreu a água e serviu os pedaços fumegantes em um prato fundo, passando por cima uma generosa colherada de margarina amarela que derreteu instantaneamente, formando poças douradas. O cheiro combinado — a terra do aipim, a gordura da margarina, a amargura reconfortante do café — foi um bálsamo e um despertar. Um a um, o grupo foi se levantando, atraído pelo cheiro bom de cuidado daquele café da manhã simples.

Sentaram-se no chão da varanda, comendo em silêncio, aquecidos pelo sol da manhã que filtrava pelas tábuas. Foi quando Seu Nato, depois de um longo gole de café, limpou a boca no dorso da mão e falou, seu olhar sério percorrendo o grupo.

"Consegui um encontro. Com uma pessoa que tá nos bastidores do tal movimento. Mas o lugar é complicado: é lá no aeroporto da ilha. No Galeão."

Um frio percorreu a espinha de todos. O aeroporto. Um lugar de controle, de passagens, de autoridades.

"Só pode ir um," continuou Seu Nato. "Dois chama atenção. Um vai e outro fica atrás de vigia, de longe. Porque confiança, nos tempos de hoje, é artigo raro."

A decisão sobre quem iria pairou no ar por um segundo. Então, Ana se apresentou para a missão:

"Eu vou," disse com sua voz saindo mais firme do que ela sentia. Ela não explicou na hora, mas o peso em seus olhos era suficiente para que os outros, especialmente Lucas, sentissem que havia mais naquela escolha do que coragem.

Paulo se ofereceu para ser a vigia. Conhecia os terrenos acidentados ao redor do aeroporto.

Seu Nato então deu os detalhes, sua voz baixa e grave: "O homem vai estar de chapéu de palha e com um jornal dobrado no bolso de trás. A senha é: 'O vento tá forte pra regata'. Ele responde: 'Mas a maré tá favorável'."

O trajeto na carroça do Caboclo foi um silêncio vibrante de nervos. A estrada de terra batida da Ilha do Governador parecia interminável. Ana, no vestido branco simples que lhe fora emprestado, sentia o tecido áspero contra a pele, um disfarce que a fazia se sentir ao mesmo tempo vulnerável e invisível. A trança no cabelo puxava sua testa, o batom emprestado era um peso estranho nos lábios. O perfume de alfazema, doce e campestre, tentava mascarar o cheiro do medo.

Paulo, ao seu lado, era uma estátua de tensão concentrada. Seus olhos não paravam de vasculhar a paisagem, os poucos transeuntes, o horizonte.

Na Estrada das Canárias, o Caboclo os deixou com um aceno mudo. O ônibus que os levou até as proximidades do Aeroporto do Galeão era velho e barulhento. Ana sentiu cada olhar dos outros passageiros como um potencial risco.

Ao descerem em frente ao saguão do terminal, o plano foi posto em ação. Paulo sentou-se em um banco do outro lado da rua, pegando um jornal abandonado. Ana respirou fundo, o perfume de alfazema subindo em uma nuvem reconfortante e suave. Ela entrou.

O saguão era elegante, iluminado por luz fluorescente, com o cheiro característico de aromatizante, naftalina e malas de couro. Algumas famílias aguardavam voos, homens de negócios com maletas. Ana escaneou o ambiente. E então, viu. No canto mais afastado, perto de uma janela que dava para a pista de pouso, um homem de costas. Chapéu de palha. Jornal dobrado no bolso traseiro da calça cáqui.

Seu coração acelerou, martelando contra as costelas. Ela se aproximou, seus passos ecoando no piso de granilite. Paulo, do lado de fora, contou até dez, levantou-se e entrou também, sentando-se em uma cadeira estofada perto da entrada, com uma visão clara dela e do homem.

Ana parou a um passo do homem. A nuca dele era familiar, os cabelos cortados rentes acima da gola da camisa. Ela forçou a voz a sair firme, baixa, como ensinara Seu Nato:

"O vento tá forte pra regata."

O homem se virou, começando a responder com a voz contida que combinara: "Mas a maré..."

A frase morreu em seus lábios. O chapéu de palha escondeu parcialmente seu rosto por um segundo, mas quando ele ergueu a cabeça, o choque foi físico, um soco no estômago de ambos.

Era Rafael.

Mas não o irmão-cadete que ela imaginava. Era um Rafael transformado. O rosto estava mais magro, mais duro, marcado por uma tensão que não era só da disciplina militar. Seus olhos, os mesmos dela em um formato, estavam fundos, com sombras escuras sob eles. A farda da Aeronáutica não estava. Vestia roupas civis simples, mas sua postura era ereta, vigilante.

"Ana?", ele sussurrou, o nome saindo como um golpe rouco. O choque em seu rosto deu lugar a uma avalanche de emoções: incredulidade, medo, uma ponta de raiva e, por fim, um pavor profundo. "O que... como você... Aqui?"

Ana sentiu o chão desaparecer sob seus pés. Um calafrio subiu da base da espinha até o couro cabeludo. Seu disfarce, sua missão, todo o plano desmoronou naquele segundo. O contato da resistência, a pessoa que poderia salvá-los... era seu próprio irmão. O irmão que ela pensava estar do outro lado.

"Você...", ela engasgou, os olhos arregalados. "A 'pessoa do movimento'... é você?"

Rafael olhou rapidamente para os lados, seu treinamento militar falando mais alto que o choque. Ele pegou seu braço com uma força que não era violenta, mas urgente. "Não aqui. Você não pode estar aqui. É uma armadilha. Vamos. Agora."

A palavra "armadilha" fez Paulo, do outro lado da sala, se levantar de repente, pronto para intervir. Mas ele viu a expressão de Ana, o reconhecimento, a falta de luta. Não era uma captura. Era algo muito mais complexo.

Rafael, sem soltar o braço de Ana, começou a caminhar rapidamente, puxando-a não para a saída principal, mas para um corredor lateral de serviço, longe dos olhares. Ana, atordoada, o seguiu. Paulo, mantendo a distância, os seguiu também, seu coração batendo forte. O encontro que deveria ser sobre códigos e alianças tinha se transformado, em um instante, em um confronto familiar explosivo no coração do perigo.

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O Arquivo das Sombras: 1968 (Parte XXVII)

Rafael entrou em um corredor de serviço mal iluminado e com cheiro de detergente e mofo, seguido por Ana. A cena foi de uma tensão que poder...