A luz da manhã não entrava suave; entrava em lâminas afiadas pelas frestas das persianas quebradas, cortando a penumbra do sobrado e iluminando redomas de poeira ainda pairante. O sono da noite anterior havia sido raso, agitado pelos roteiros mentais que cada um ensaiava, revirava e ajustava no escuro. O medo era um cobertor pesado, mas a excitação era um café forte ainda por vir – e ele não tardaria.
O som da porta rangendo anunciou Márcio, um vulto sólido e confiável contra a claridade da rua. Ele trazia a provisão matinal num saco de papel: pães ainda quentes, um naco generoso de mortadela envolto em papel manteiga, e, o tesouro maior, um pacote amarrado com barbante contendo pó de café. O aroma terroso e vigoroso se espalhou como uma primeira promessa de ânimo.
— O dia vem aí, camaradas — anunciou Márcio, sua voz grave um bálsamo de normalidade. — O estômago forte é o primeiro passo.
Enquanto se formava a fila paciente e sonolenta diante do único banheiro – um ritual de convivência quase doméstico –, Alice pegou os ingredientes com a autoridade de uma general. Em poucos minutos, o sibilo da água fervendo na chaleira e o som da mortadela sendo fatiada fina, quase translúcida, sobre a tábua, criaram a trilha sonora daquela manhã decisiva.
Madame Satã, imponente mesmo em roupas simples, aproximou-se de Márcio. Seus olhos estavam sérios.
— Márcio, querido, preciso de um favor de pernas. Vá até o Nelsinho no Cais do Porto. Diga que a velha amiga precisa do caminhão outra vez. Que o pacote é frágil e precisa de transporte discreto. Ele entenderá.
Márcio anuiu, guardando o recado como se fosse uma ordem de batalha – o que, de certa forma, era.
Enquanto isso, o café coado no pano grosso começou a escorrer, seu perfume amargo e convidativo dominando por completo o ar. Alice serviu numas velhas canecas de flandres, cada uma acompanhada de um pão aberto com fatias sobrepostas de mortadela. Era uma refeição simples, mas honesta, que solidificava o chão sob os pés.
Sentados em croda no chão, apoiados nas mesas da redação ou no parapeito da janela, o grupo comeu em silêncio por um momento, saboreando o café forte que queimava a língua e afastava os últimos véus do sono. O alimento fazia mais do que nutrir; era um ritual de união, um lembrete tácito do que estavam defendendo: a simplicidade, a comunhão, o direito a um café da manhã em paz.
Foi Paulo quem quebrou o silêncio, sua voz mais calma agora, integrada ao grupo. — O Lucas entra como distribuidor hoje à tarde. O horário de entrega no clube é sempre no fim do dia, quando os oficiais começam a chegar para os seus encontros. É o momento de mais movimento, mais confusão. Bom para passar despercebido.
Lucas, mastigando metodicamente, assentiu. Alice avisou: O velho do porto, o Seu Martinho, já está avisado.Eu vou com o Lucas para o primeiro contato, para dar o aval. Depois, ele segue só com Nelsinho.
Carlos colocou a caneca no chão, os óculos refletindo a faixa de sol. — Enquanto isso, nós finalizamos a montagem do dossiê. Já temos a narrativa: a linhagem da crueldade, do bebê afogado e da Isabela no sanatório, a figura do avô do Sabará. Precisamos conectar isso diretamente ao coronel. Os arquivos dele no clube tem que ter essa peça.
Alice, lavando as canecas, virou-se. — Então está traçado. Eu e o Lucas saímos depois do almoço para falar com o Seu Geraldo. O resto de vocês tranca a porta aqui e vira essas máquinas. O dia é de trabalho. E de cuidado.
Madame Satã, observando a cena do canto da sala onde seu roupão parecia um manto, acrescentou, sua voz um contralto suave e carregado de significado: — A cidade está cheia de olhos hoje. Sinto no ar. Andem com as sombras de vocês, não com seus corpos. Lembrem-se: Bárbara não os escolheu por acaso. Ela escolheu sobreviventes.
As palavras pairaram sobre o grupo, misturando-se ao último vapor do café. O plano estava repassado, não mais apenas na memória, mas no ar que respiravam, no sabor da mortadela e do pão, no peso das tarefas de cada um. O medo ainda estava lá, sim, mas agora tinha um endereço e um horário: o Clube Militar, ao entardecer. E a excitação havia se transformado em algo mais sólido: determinação.
O sol subia, cortando cada vez mais o sobrado. Era hora de trabalhar. A redação do Correio Matutino, pela primeira vez em anos, tinha uma verdadeira deadline a cumprir.
O ar dentro da loja do Seu Martinho era denso, um coquetel rançoso de vapor de cachaça barata, cerveja derramada há muito seca e o suor de décadas impregnado nas tábuas do piso e no couro do balcão. Era o cheiro de um lugar que nunca dormia de verdade, apenas cochilava entre uma entrega e outra. Pilhas de engradados de Brahma formavam muralhas instáveis, e garrafas de aguardente reluziam com um brilho duvidoso nas prateleiras empoeiradas.
Alice entrou primeiro, varrendo a penumbra com o olhar afiado. Lucas a seguiu, a porta com sino tilintando de forma inadequada atrás deles.
— Martinho! Tá contando os lucros ou os espinhos na consciência? — chamou Alice, sua voz familiar cortando o mofo do ar.
De trás de uma fortaleza de engradados vazios surgiu o homem. Seu Martinho usava um boné verde-musgo, desbotado pelo tempo, com uma pequena estrela bordada de forma desleixada no front — uma lembrança de alguma causa antiga, talvez. Seu rosto era um mapa de rugas profundas, e entre os lábios firmes, um palito de dentes dançava de um lado para o outro. Seus olhos, dois pedaços de céu azul sob a aba do boné, pousaram primeiro em Alice com um misto de afeição e desconfiança, depois examinaram Lucas com a lentidão calculada de um ourives avaliando uma pedra falsa.
— Alice. Quando você aparece, é porque o caldo tá pra entornar, e você quer que eu segure a panela — resmungou, a voz um rosnado baixo. O palito parou por um instante. — E trouxe reforço.
— Reforço é coisa de quem vai pra briga, Martinho. A gente só vai fazer uma entrega. Este é o Lucas. — Alice fez um gesto com a cabeça.
Lucas manteve o olhar firme, mas respeitoso, sob o escrutínio do velho.
— Entregas eu faço sozinho há mais tempo que você tem de vida, moça — disse Martinho, os braços cruzados sobre um avental manchado. — Não preciso de garoto bonito pra carregar caixa.
— Não é só carregar caixa — interveio Lucas, falando antes que Alice pudesse. Sua voz era clara, sem desafio, mas carregada de uma urgência contida. — É a entrega de quinta-feira no Clube. E preciso de vinte minutos dentro. Sozinho.
O palito de dentes parou completamente na boca de Martinho. Seus olhos se estreitaram até quase desaparecerem. — Dentro? Dentro de onde, rapaz? O porão? A cozinha?
— No segundo pavimento. No escritório do velho Sabará.
Um silêncio pesado caiu sobre a loja, abafado apenas pelo zumbido distante de uma mosca. O rosto de Martinho não se alterou, mas uma tensão nova percorreu seus ombros largos. Ele cuspiu o palito no chão de tábuas encardidas.
— Você é louco. Ou é suicida. Aquele andar é só pros de farda alta e suas… reuniões. Nem os garçons sobem lá sem ser chamado.
— Por isso preciso da sua cobertura — insistiu Lucas, mantendo a calma. — O senhor faz a entrega normal no bar e no depósito do térreo. Leva seu tempo. Conversa, reclama do preço, qualquer coisa. Me dá vinte minutos. Eu subo pela escada de serviço que vi nos seus esquemas antigos, a que você comentou uma vez com a Dona Alice.
Alice confirmou com um leve aceno. Ela havia fornecido a Lucas todos os detalhes que sabia, frutos de conversas de décadas.
Martinho olhou para Alice, uma interrogação muda. Ela encarou de volta. — É importante, Martinho. É sobre o que a gente sempre resmungou nos cantos, mas nunca pôde provar. É o fio que puxa o novelo todo.
O velho ficou mastigando o ar agora, o queixo para frente, os dedos tamborilando no balcão sujo. O cheiro azedo da loja parecia se intensificar.
— Vinte minutos — repetiu ele, como se provasse o sabor amargo das palavras. — E se em dez você for pego? E se em cinco um segurança te encontra no corredor errado?
— Então eu sou apenas o ajudante perdido, assustado, que fugiu. O senhor não sabe de nada. A entrega é a única verdade. — Lucas tinha o roteiro preparado. — Mas eles não vão me pegar. Não se eu tiver o caminho certo.
Martinho suspirou, um som profundo que parecia vir das fundações da loja. Pegou outro palito de uma caixa no balcão e o colocou entre os dentes.
— A entrega é quinta, fim da tarde. Chego aqui com a van às quatro em ponto. Você vem vestido pra trabalhar, não pra passeio. — Seu olhar percorreu as roupas de Lucas com desdém. — Botas, calça grossa, camisa escura. Você vai carregar as pesadas. Eu levo as chaves e lido com o sargento da portaria. Você fica comigo até a despensa. Depois… some. Vinte minutos. No vigésimo primeiro, eu começo a fazer um barulho do cão para ir embora, com ou sem você.
— Comigo — afirmou Lucas.
— O caminhão de fuga — lembrou Alice, sua voz baixa mas firme. — Estará na Rua Santa Luzia perto da igreja, motorista ligado. Se algo feder, é o plano B.
— Tudo com você é plano B, Alice — disse Martinho, mas sem azedume, apenas um cansaço antigo. — Tá certo. Quinta-feira. Quatro horas. Vinte minutos. E meu nome não aparece em nada. Isso aqui — ele bateu com o nó dos dedos no boné com a estrela — já sobreviveu a muita tempestade. Não quero que afunde por causa de um novato idealista.
— Não é idealismo, Seu Martinho — disse Lucas ajeitando os óculos, pela primeira vez com um lampejo de algo mais pessoal no olhar. — É justiça. E sobrevivência.
O velho distribuidor o observou por um longo momento, o palito movendo-se lentamente. Por fim, deu um aceno quase imperceptível.
— Justiça. Sobrevivência. São bons motivos. Agora, tirem o cheiro de conspiração da minha loja antes que espante a clientela. E você, rapaz… na quinta, não atrase.
Alice colocou uma mão no ombro de Lucas, um gesto de missão cumprida. Ao saírem, o tilintar do sino da porta soou como um sinal de partida. O relógio, agora, marcava o tempo até quinta-feira, e os vinte minutos dentro do vespeiro que poderiam mudar tudo — ou acabar com todos. Seu Martinho ficou para trás, mastigando seu palito e o peso daquela promessa, seu boné verde uma bandeira desbotada em meio às garrafas silenciosas.
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