A luz da manhã invadiu o recinto como um jorro de ouro líquido, banhando as pedras antigas do chão. Foi um processo silencioso e irreversível. A poltrona de veludo desbotado foi a primeira a se dissolver, tornando-se apenas uma mancha de cor na parede que depois se desfez em poeira de luz. As estantes de livros, com seus volumes de segredos, esmaeceram como fumaça, até que nada restou senão a textura áspera da pedra original. As velas se apagaram não com um sopro, mas com um esvaecimento, seus pavios sumindo antes mesmo que a cera derretida pudesse pingar.
Bárbara dos Prazeres ficou por último. De pé, diante deles, envolta naquela luz que a atravessava, ela parecia feita de memória e sombra. Seus olhos profundos encontraram os de cada um — em Lucas, um agradecimento mudo; em Ana, um último lampejo de admiração temperada pelo entendimento; em Laura, um reconhecimento de força selvagem; nos outros, o alívio perplexo. Ela não acenou. Apenas inclinou levemente a cabeça, um gesto de despedida e de bênção de uma era para outra.
E então, ela também se desfez. Não como algo que se vai, mas como algo que se recolhe, fundindo-se à própria parede, ao ar, à história do lugar. Por um instante, o perfume pesado de flores murchas e cera doce permaneceu, mais real do que qualquer móvel ou figura. Até que a brisa marinha que subia da Praça XV entrou pela porta aberta, fresca e salgada, envolvendo o grupo. O perfume resistou por um último suspiro, uma última assinatura no ar, antes de se render e desaparecer.
Diante deles, não havia mais um salão oculto. Apena a porta arqueada e apodrecida de um depósito abandonado, encostada na parede de um casarão antigo na Travessa do Comércio. A luz do sol, agora plena, iluminava os grãos de poeira dançando no ar. O som da cidade acordando — bondes rangendo, primeiros vendedores, o marulhar distante — invadia o silêncio sagrado que havia reinado minutos antes.
Lucas apertou o diário de couro negro contra o peito. Era sólido. Real. A prova tangível de que tudo aquilo acontecera. Ele trocou um olhar com os outros. Nenhuma palavra era necessária. A experiência estava cravada neles, mas o mundo lá fora não parara. O perigo, embora afastado, ainda pairaria sobre eles.
Em fila indiana, silenciosos, saíram para a rua. A Rua Primeiro de Março estava mais movimentada agora, com funcionários públicos apressados rumo aos gabinetes, marinheiros em licença, o burburinho normal de uma cidade que tentava viver sob um regime anormal. Eles se misturaram ao fluxo, cinco jovens anônimos em meio à multidão, carregando nos olhos a lembrança de sombras e nos bolsos um segredo explosivo.
Viraram à esquerda, seguindo instintivamente, sem combinarem. O destino era a Lapa. O bairro da boemia, dos artistas, dos esconderijos intelectuais, dos apartamentos caindo aos pedaços onde panfletos eram impressos em porões abafados. Era para lá que iam, não mais apenas para se esconder, mas para planejar. O diário de Bárbara era uma arma, mas precisava ser usada com precisão cirúrgica. Uma denúncia anônima? Uma carta para um jornalista corajoso no exterior? Um plano para chantagear o próprio coronel?
O peso do que carregavam era imenso, mas diferente do medo cego da perseguição. Era um peso frio, calculado, perigoso. Eles haviam feito um pacto com uma lenda e saído com uma arma. O sabor na boca era amargo e doce, como o perfume que já se dissipara.
Enquanto subiam a ladeira em direção aos arcos da Lapa, o sol quente do Rio de Janeiro batia em seus rostos, dissipando o último frio da noite e daquele encontro sobrenatural. Eram de volta ao mundo dos vivos, dos combatentes, dos sonhadores de carne e osso. Mas uma parte deles, para sempre, ficaria naquela sala sem tempo, com a bruxa dos Prazeres, guardiã de segredos e de histórias que o poder jamais poderia apagar completamente.
A luta continuava. Mas agora, tinham um aliado inesperado vindo do passado mais sombrio da cidade.
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