O silêncio tenso do porão foi quebrado por um estampido agudo, estridente — o som de vidro fino se espatifando com violência. Todos se arrepiaram, virando-se de uma só vez para a cortina de veludo que separava o cômodo do altar.
Alice foi a primeira a se mover, seus passos rápidos e silenciosos. Ela puxou a cortina e congelou na entrada.
Os outros se aglomeraram atrás dela.
A cena era de violência pura e simbólica. A taça de cristal que ficava diante de Maria Navalha, sempre com água fresca e uma rosa vermelha, não estava apenas caída. Estava explodida. Estilhaços afiados espalhavam-se pelo chão de terra, cintilando na penumbra como lágrimas congeladas. A água formava uma poça escura. E no meio do desastre, a rosa vermelha jazia, suas pétalas arrancadas e espalhadas como gotas de sangue sobre o vidro quebrado.
A própria figura de Maria Navalha parecia diferente. O pequeno leque de navalhas em seu cinto de pano, que sempre estiveram cerradas, agora parecia… aberto. Como se as lâminas minúsculas tivessem se desdobrado um milímetro, captando um raio de luz inexistente e o refletindo em uma ameaça fria.
Ninguém disse uma palavra. O ar no porão ficou gelado, carregado com uma pressão que não era do mundo físico.
Foi Ana quem quebrou o silêncio, sua voz um sussurro rouco de compreensão instantânea.
"Ela quer falar."
Todos a olharam.
"Maria Navalha," Ana continuou, seus olhos fixos na rosa despedaçada. "A taça é oferenda. A água, a pureza, a vida. A rosa, o amor, a paixão, a feminilidade. Tudo quebrado. Espalhado. Não foi um acidente. Foi uma mensagem."
Madame Satã assentiu lentamente, seu rosto sério. "Ela não quebrou a garrafa do Zé. Nem derrubou o charuto. Foi a taça dela. É um recado para as mulheres."
Alice, ainda na porta, falou com uma reverência que raramente se ouvia em sua voz: "Ela está brava. Não conosco. Pelo que vocês leram. Pela Isabela. Pela Jurema. Pela Luzia. Pelas que foram quebradas e cujas pétalas foram espalhadas no lixo da história."
Laura sentou-se pesadamente em um caixote, olhando para seus próprios punhos, como se visse, pela primeira vez, não apenas sua raiva, mas a raiva de uma linhagem inteira de mulheres. "Ela quer que a gente use isso. O que descobrimos. Não só para derrubar um coronel. Mas para cortar essa história. Para expor o que eles fizeram com as mulheres. Para que Isabela não tenha sido internada em vão. Para que a escrava que foi jogada no rio com seu bebê não tenha morrido em vão."
Carlos olhou para a pasta grossa sobre a mesa. Agora ela não parecia apenas pesada. Parecia sagrada. Era um arquivo de crimes, sim, mas também um testamento de resistência feminina silenciada.
"Então o plano muda," disse Lucas, sua voz ganhando uma convicção nova. "Não vamos apenas chantagear o Sabará com o assassinato do italiano. Vamos ameaçá-lo com a exposição total. Do avô que matou por dinheiro e estuprou escravas. Do pai que mandou a própria mulher para o hospício por se rebelar. Vamos amarrar o nome Sabará não só à bandidagem, mas à covardia contra mulheres. É a mancha que nenhum militar machista consegue lavar."
Madame Satã sorriu. Era um sorriso terrível e belo. "Aí está. Maria Navalha não nos deu um aviso. Deu uma direção. Ela afiou a lâmina do nosso ataque. Em vez de um tiro no bolso, será um golpe no coração da honra falsa dele. E no de todos os iguais a ele."
Ana se ajoelhou, cuidadosamente, diante dos estilhaços. Sem tocar em nada, ela sussurrou: "Nós ouvimos. Suas histórias não ficarão aqui."
E então, como se respondendo, um único estilhaço de cristal, o maior, que repousava sobre uma pétala vermelha intacta, estalou com um som claro, partindo-se ao meio.
A mensagem estava recebida. E aprovada.
O próximo movimento do grupo não seria mais apenas de sobrevivência ou vingança política. Seria um ato de justiça histórica, abençoado — ou demandado — pela fúria sagrada de uma entidade justiceira. O Arquivo das Sombras agora tinha uma curadora. E ela exigia sangue metafórico pelo sangue real derramado.
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