Rio de Janeiro, 1968. Praça XV, 5h da manhã.
O céu ainda carregado da noite de temporal deixava o ar pesado, úmido, cheirando a asfalto molhado e maresia. As pedras irregulares do Largo da Prainha escorregadias sob os pés descalços de Paulo, que liderava o grupo de cinco jovens. Seus pulmões queimavam, não só da corrida, mas do medo puro, agudo – aquele que só o faro de cassetete e botina de militar em perseguição sabe incutir.
Tinham passado a noite no Instituto de Filosofia da UFRJ, no centro, preparando cartazes mimeografados. “Abaixo a Ditadura”, “O povo unido jamais será vencido”, “Anistia”. As palavras eram sua arma, mas agora, descobertos por uma patrulha do DOI-CODI, eram apenas papel criminoso e corpos vulneráveis.
“Pela sombra!”, sussurrou Ana, a voz um fio, puxando Carlos pelo braço. Seus rostos eram máscaras pálidas sob a luz bruxuleante dos postes. Atravessaram a Praça XV quase rastejando, o vulto solene do Paço Imperial à esquerda parecendo fechar-se sobre eles. O alvo era o Arco do Teles, a passagem estreita e escura que levava à Travessa do Comércio – um labirinto de becos onde talvez se perdessem.
Ao dobrar a esquina, o som das botas ecoando nas pedras ficou mais alto. Estavam encurralados. A saída da travessa à frente estava bloqueada por um caminhão de lixo. Não havia para onde correr.
Foi então que a ouviram.
Uma voz. Clara, melodiosa, mas com uma ressonância estranha, como se viesse das próprias paredes úmidas de pedra:
“Ei… psiu. Venham por aqui.”
Não havia ninguém visível. Apenas a escuridão profunda de uma porta arqueada, baixa, que parecia não levar a lugar nenhum – uma entrada de serviço abandonada, ou talvez a antiga saída de um casarão.
“É armadilha”, gemeu Carlos, encostando-se à parede, os olhos arregalados.
Mas as botas já estavam no extremo do arco. O feixe de uma lanterna cortou a escuridão, varrendo as paredes.
Sem outra escolha, Paulo empurrou a porta de madeira podre. Cedeu com um rangido que lhes pareceu um grito. Entraram, um atrás do outro, na escuridão total. A porta fechou-se sozinha atrás deles, com um baque surdo.
O cheiro mudou instantaneamente. Não era mais mofo e lixo. Era cheiro de cera derretida, de flores murchas, de perfume barato e doce, envelhecido. Uma luz tênue surgiu, vinda de uma única vela sobre uma mesa de mármore suja.
E ali, sentada em uma poltrona de veludo desbotado, estava uma mulher. Vestia um robe de seda escarlate, desfiado nas bordas. Seus cabelos negros caíam em cachos elaborados sobre os ombros pálidos. Seus olhos, profundos e inteligentes, estudavam cada um deles com uma curiosidade que não era deste tempo.
“Bem-vindos ao meu salão, corações apressados”, disse ela, e um sorriso triste brincou em seus lábios pintados de vermelho vivo. “A rua lá fora é perigosa para sonhadores… sempre foi.”
Era Bárbara dos Prazeres. A cortesã do século XIX, a bruxa do Arco do Teles, de quem só se ouviam histórias em sussurros. Dizia-se que ela conhecia todos os segredos da cidade, que fazia pactos com amantes desesperados e que, mesmo após sua morte trágica, nunca realmente abandonou os becos onde viveu e amou.
“Vocês… você é…”, balbuciou Ana, incapaz de completar a frase.
“Um fantasma? Uma lenda? Talvez”, Bárbara ergueu a mão, e a chama da vela dançou, refletindo-se em um grande espelho emoldurado na parede atrás dela. No reflexo, eles não viram a si mesmos. Viram a rua lá fora, ainda escura, com os soldados do DOI passando reto pela porta disfarçada, sem percebê-la. “Mas hoje em dia, quem não é um fantasma nesta cidade? Quem não vive escondido, com medo de ser apagado?”
Ela se levantou, e seu movimento era fluido, etéreo. Caminhou até uma estante cheia de livros encadernados em couro, todos parecendo antigos e cobertos de pó.
“Eles procuram suas palavras, não é? Palavras que queimam. Eu também conheci esse fogo.” Ela pousou os dedos sobre a lombada de um livro mais grosso. “Aqui, neste meu pequeno reino entre as paredes, guardo palavras que o poder de cada época quis calar. Palavras de amor, de revolta… de liberdade.”
Voltou-se para eles, e seu olhar era sério, quase maternal.
“Posso escondê-los até o amanhecer. As sombras aqui são minhas aliadas. Mas me digam… o que estão dispostos a trocar por um segredo? Por uma história que pode protegê-los?”
Do lado de fora, o som das botas começou a retornar, mais devagar, como se farejassem algo.
O grupo de cinco jovens trocou olhares. A bruxa do Arco do Teles lhes oferecia abrigo. Mas em 1968, em plena ditadura, até um pacto com um fantasma do passado poderia ser menos perigoso que cair nas mãos dos homens de uniforme.
E Bárbara dos Prazeres aguardava, com um sorriso que conhecia bem o preço de se esconder, e o custo ainda maior de se levantar.
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