segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

O Arquivo das Sombras: 1968 (Parte VI)

O susto foi coletivo. O som da garrafa quebrando no calçamento de paralelepípedos os fez pular, ainda com os nervos à flor da pele da noite de fuga e do encontro sobrenatural. Quando a gargalhada rolou, grossa, franca e um pouco rouca, todos se viraram de uma vez.

A mulher encostada no batente de uma porta azul desbotada na Rua Maranguape era uma figura que parecia ter saído de um cartão-postal antigo, mas desbotado pela vida. Seus quarenta e poucos anos pareciam carregar o dobro. A blusa vermelha justa realçava seus seios fartos, e a saia rodada, com suas rosas enormes e berrantes, balançava levemente com seu movimento. Ela segurava o gargalo de uma garrafa de cachaça quebrada, observando-os com um olhar afiado, divertido e um pouco cínico.

"O que vocês fazem aqui tão cedo, crianças? A festa da Lapa já acabou. Ou ainda não começou pra vocês?", disse ela, a voz tão marcante quanto sua aparência. Havia um sotaque carioca carregado, das antigas.

Lucas, ainda segurando o diário com força, tentou articular uma resposta, mas apenas abriu a boca. Foi Ana quem, com um fio de voz, respondeu: "Estamos... só passando."

A mulher soltou outra gargalhada, curta. "Passando? Com essa cara de quem viu o diabo e conseguiu um autógrafo dele? Conheço essa cara."
Seus olhos, inteligentes e cansados, percorreram o grupo. Pararam por uma fração de segundo a mais no diário de Lucas, depois na expressão assustada de Carlos. "Tão fugindo. Dos home, né? Dos 'caveiras'. Cheiro de medo novo em vocês. E..." ela farejou o ar, dramaticamente, "...cheiro de coisa velha também. Muito velha."

Ela largou o caco de garrafa no chão, onde se juntou a outros. "Eu sou a Alice. Mas pode me chamar de Cavalo de Pau. Todo mundo chama." Ela disse o apelido com um orgulho ferido. "Nos anos 20, essa rua aqui tremia no meu comando. Agora só comando barata e poeira." Ela os examinou de novo. "Vocês vieram do lado do Arco, né? Daqueles becos. Viram coisas."

Não era uma pergunta. Era uma afirmação.

Laura, sempre mais impulsiva, falou: "Como você sabe?"

Alice Cavalo de Pau deu de ombros, um sorriso meio torto nos lábios. "Aqui na Lapa, as paredes têm ouvido e as ruas têm memória. E eu... eu sou mais velha que a sujeira desse bairro. Já vi de tudo. Inclusive gente que dá de cara com a outra residente do Arco." Ela fez uma pausa, carregada de significado. "A Barbarinha. A dama de vermelho. Vocês encontraram ela, não foi?"

O grupo ficou em silêncio, um silêncio que confirmou tudo.

Alice assobiou baixo, uma nota longa e respeitosa. "Então são uns sortudos. Ou uns azarados, não sei ainda. Ela não aparece pra qualquer um. Só pra quem tá realmente perdido... ou pra quem carrega uma chama que vale a pena ela alimentar." Seu olhar foi novamente para o diário. "Ela deu um presente pra vocês. Ou uma maldição. Depende de como usarem."

Ela se afastou da porta e deu dois passos na direção deles. O cheiro agora era de cachaça barata, suor e um perfume forte e barato, completamente diferente do de Bárbara.

"Olha," ela disse, a voz baixando para um tom mais sério, quase confidencial. "A Barbarinha é do século passado. Ela entende de segredos podres de gente fina. Mas pra fazer um segredo virar arma hoje, na mão de vocês... aí já é com os vivos. Com quem conhece os becos de agora, os esconderijos, os jornalistas com coragem (poucos), os advogados que ainda não venderam a alma (menos ainda)."

Ela fixou os olhos em Lucas. "Você parece o líderzinho. E parece que segura bem um segredo. Mas segredo parado é pedra morta. Tem que atirá-lo."

"Por que você está nos falando isso?", perguntou Paulo, finalmente encontrando a voz, ainda desconfiado.

Alice riu de novo, mas sem alegria. "Porque, meu querido, odeio os 'caveiras' mais do que odeio café frio. Eles fecharam meus cabarés, prenderam minhas meninas, acharam que 'moralizaram' a Lapa. Tirarem o brilho da noite foi o maior crime. E porque...", ela hesitou, e pela primeira vez seu olhar perdeu um pouco do cinismo, "...porque a Barbarinha uma vez... há muito, muito tempo... me deu abrigo também. Quando eu era só uma pivete assustada, fugindo de um cliente violento. Ela não ajuda qualquer um. Se ela ajudou vocês, é porque tem algo em vocês que vale a pena. E nessa cidade podre, qualquer coisa que ainda vale a pena precisa de um empurrão."

Ela apontou com o queixo para um sobrado de dois andares mais adiante, com as janelas do primeiro andar todas tapadas com madeira. "Ali embaixo tem uma porta. Batam três vezes, depois duas. Digam que Cavalo de Pau mandou. Lá dentro tem um mimeógrafo que ainda funciona, tem papel, tem gente que sabe fazer uma cópia desse diário chegar onde precisa. E, mais importante, tem gente que sabe como sumir depois."

Ela os olhou um a um, sua figura extravagante parecendo agora uma anjo caído, ou melhor, uma generalita da resistência marginal do Rio.

"A Barbarinha lhes deu a pólvora. Eu posso lhes dar o cano da arma. O que dizem, crianças? Vão continuar aí parados, com ouro na mão e medo no cu, ou vão tentar fazer algum barulho de verdade?"

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