segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

O Arquivo das Sombras: 1968 (Parte XI)

Enquanto Ana partia em sua missão, um silêncio pesado caiu sobre os que ficaram no porão. A preocupação era palpável, mas também uma sensação de inutilidade, especialmente em Paulo. Ele se sentia um peso. Não era um intelectual como Lucas, um estrategista jurídico como Carlos, ou portador de uma fúria transformadora como Laura. Suas mãos, largas e com os nós dos dedos marcados, pareciam boas apenas para segurar coisas, não para moldar o destino.

Foi então que Madame Satã, enquanto organizava papéis falsos para um plano B, praguejou baixo: "Preciso de um carimbo. Um carimbo do Arquivo Nacional, ou algo convincente, para o plano de contingência. Alguém aqui sabe desenhar? Copiar uma assinatura?"

Lucas e Carlos sacudiram a cabeça. Laura encolheu os ombros.

Paulo, quase sem pensar, murmurou: "Eu... eu consigo."

Todos se viraram para ele.

"Sério, Paulo?", perguntou Lucas.

Paulo corou um pouco, mas sua voz ficou mais firme. "Na gráfica onde meu pai trabalhava, antes de ser demitido, eu passava as férias. Aprendi a compor tipo, a misturar tinta, a fazer pequenos reparos nos carimbos de borracha... até a copiar letras para cartazes, quando o cliente pedia uma 'coisa bonita'. É só... é só uma coisa que eu sei fazer."

Madame Satã o observou com um novo interesse, seus olhos analíticos percorrendo-o de cima a baixo. "Mostre-me," ela ordenou, não pediu.

Ela pegou um papel em branco, escreveu "Arquivo Nacional" com uma letra formal e passou para Paulo, junto de um lápis de carpinteiro bem apontado e uma borracha velha. "Copie. Não a assinatura, apenas as letras. A forma."

Paulo pegou os objetos. Suas mãos, que antes pareciam desajeitadas, mudaram. Um tremor de concentração, não de nervosismo, tomou conta delas. Ele estudou a escrita por um momento, virou a folha e, no verso, começou a desenhar. Não era uma cópia perfeita à primeira vista, mas ele trabalhava com uma paciência meticulosa. Ele esboçava o esqueleto da letra, ajustava a espessura dos traços, cuidava das curvas e serifas. Em minutos, ele tinha uma réplica convincente, não idêntica, mas com a aura da letra oficial.

Carlos assobiou baixinho. "Isso é... impressionante."

"É mais do que desenho," disse Paulo, ganhando confiança. "É entender como a letra foi feita, com que pressão, com que instrumento. Um carimbo é mais fácil, é negativo. Se eu tiver o material certo... borracha de sapato velho pode servir, uma goiva afiada..."

Madame Satã sorriu, um sorriso largo e genuíno que raramente aparecia. "Alice! Traz a caixa de ferramentas da velha gráfica que aquele bêbado deixou aqui em troca de dívida!"

Alice sumiu e voltou com uma caixa de metal enferrujada. Dentro, havia um tesouro: goivas de diferentes tamanhos, lixas finas, pedaços de borracha de matriz, pequenos rolos de tinta, até um frasco de álcool anidro para limpeza.

"Seu talento não é pequeno, garoto," disse Madame Satã, colocando uma mão pesada no ombro de Paulo. "É uma das armas mais valiosas na guerra das sombras. Documentos falsos, crachás, carimbos oficiais, passes de acesso... um bom falsificador pode abrir portas que nem um tanque de guerra abre. E pode fazer um inimigo desaparecer do papel, ou surgir do nada."

O olhar de Paulo mudou. A insegurança deu lugar a um foco intenso. Ele via, pela primeira vez, como sua habilidade mundana, aprendida na poeira de uma gráfica decadente, poderia ser uma ferramenta de poder. Ele não era mais o "bobalhão". Era o artífice.

"Precisamos de mais do que um carimbo," disse ele, sua voz agora decidida. "Se a Ana conseguir os nomes, precisaremos de documentos para acessar outros registros, ou para criar identidades novas se a coisa apertar. Posso começar com o carimbo dos Arquivos, mas com material melhor, posso fazer coisas mais complexas."

Lucas sorriu, um peso saindo de seus ombros. O grupo estava se tornando completo. "Enquanto a Ana busca o nome no passado," ele disse, "você, Paulo, vai forjar a chave para o nosso futuro."

Madame Satã assentiu, satisfeita. "Ótimo. Paulo, você fica comigo. Vamos trabalhar. Lucas, Carlos, Laura: fiquem de olho nas notícias no rádio de pilha, monitorem a rua pela fresta. E preparem-se. Quando a Anita voltar com o nome, a guerra de verdade começa. E teremos nosso próprio falsificador para dar os primeiros golpes."

Paulo pegou uma goiva, sentindo seu peso e potencial. Suas mãos, afinal, não eram para segurar. Eram para criar. E, naquela resistência, criar uma nova verdade no papel era um ato revolucionário tão potente quanto qualquer discurso.

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