segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

O Arquivo das Sombras: 1968 (Parte XXIX)

Enquanto o grupo tentava colocar o equipamento do Correio Matutino para funcionar, Alice subiu para preparar alguma comida. 

Dentro da geladeira Frigidaire havia só água e uns dentes de alho. No armário ela encontrou algumas latas de fiambre, macarrão e uma lata de gordura de porco. 

Na pequena área aberta nos fundos do sobrado a cena era de intimidade rara e cansada. O ar noturno, úmido e pesado do porto, era cortado pelo cheiro acre do cigarro sem filtro que Márcio fumava, encostado na parede de tijolos à vista.

Madame Satã desceu os poucos degraus de concreto quebrado. Seu movimento era pesado, não pela idade, mas pelo peso das decisões e da liderança que carregava. Ela parou ao lado de Márcio, não olhando para o rosto dele, mas para o pequeno quadrado de céu sujo que se via entre os telhados.

"Me dá um cigarro."

Ele não disse nada. Apenas tirou o maço de cigarros Continental do bolso do cardigã e o estendeu para ela. Ela pegou um, colocou entre os lábios. Ele então ofereceu o isqueiro, um Zippo prateado e arranhado. Ela se inclinou, acendeu o cigarro, puxou uma longa baforada voltu a encarar o céu.

O silêncio se instalou, confortável, quebrado apenas pelo distante apito de um navio na baía. Foi ela quem quebrou, sua voz mais suave do que o usual, carregada de uma fadiga que ia além do físico.

"Isso ainda vai acabar com a gente." A afirmação não era de derrota, mas de realismo puro. A luta, a fuga, o perigo constante — era uma máquina de moer almas.

Ela virou a cabeça, finalmente olhando para o perfil dele, iluminado pela brasa do cigarro e pela luz fraca que vinha da janela do andar de cima. "Mas quando acabar... vou me lembrar desse dia."

Ela fez uma pausa, puxando outra baforada, o fumo escapando lentamente de seus lábios. "Senti sua falta."

Palavras simples que carregavam oceanos de história não contada. Márcio não se mexeu, mas seus olhos, voltados para a escuridão do quintal, pareceram suavizar por um segundo. Ele não respondeu com palavras. Aproximou o rosto do dela e lhe beijou a testa, um gesto de sincronia, de cumplicidade.

Era um momento roubado. Um instante de humanidade pura entre duas pessoas cujas vidas eram feitas de segredos, códigos e perigo iminente. Tudo que havia era apenas o reconhecimento profundo de duas almas que haviam navegado pelas mesmas sombras por muito tempo, se separaram e, pelo destino ou pelo dever, se reencontraram em outra noite de vigília.

Lá em cima, Alice improvisava um jantar com os poucos ingredientes que tinha.  O aroma inconfundível de alho dourando na banha já havia varrido o mofo do lugar, um cheiro de lar e resistência. Alice Cavalo de Pau, com a autoridade de quem comandou um cortiço por décadas, governava dois fogareiros. Em um, a água para o macarrão fervia vigorosamente. No outro, a banha derretida recebia os dentes de alho esmagados, sibilando em perfume dourado.

Mas o verdadeiro ritual era com a lata retangular de fiambre. Ela pegou a pequena chave metálica que vinha acoplada à lata, mostrando-a a Laura, que se aproximou curiosa.

— Olha só, menina. A engenhoca do povo — disse Alice, com um sorriso que tecia experiência e resiliência. Encaixou a ponta da chave no rebordo e começou a enrolar, com movimentos firmes, a faixa de metal que se desprendia. — Abre o baú do tesouro dos apertados.

A lata se abriu, revelando o bloco compacto e rosado. Com a faca afiada que parecia uma extensão do seu braço, Alice fatiou o fiambre em lâminas perfeitas, que foram logo colocadas na frigideira ao lado do alho. O contato com a gordura quente fez as fatias se arquearem e dourar nas bordas, criando um crocante caramelizado que parecia um pequeno milagre diante da simplicidade dos ingredientes.

— Na minha época, este prato sustentou muita gente boa em noite de pouco — comentou Alice, enquanto jogava o macarrão na água fervente, seu olhar perdido por um instante além das paredes, talvez vendo fantasmas da Lapa antiga. — E sustenta lutador até hoje. O segredo é não ter medo de dar sabor, mesmo com pouco.

Enquanto ela finalizava o macarrão, envolvendo-o na gordura perfumada e juntando as fatias crocantes de fiambre, os cinco jovens pararam suas tarefas. O aroma era um chamado irrecusável. Reuniram-se em torno da mesa mais estável, onde Alice serviu a comida simples, porém abundante, em pratos desencontrados.

Foi durante essa refeição, com o sabor reconfortante do macarrão e do fiambre crocante aquecendo seus estômagos e ânimos, que o planejamento recomeçou.

— Precisamos do material pronto — lembrou Ana. — O dossiê. Tudo o que temos: o caderno da Bárbara, os documentos de Isabela que pegamos no sanatório, as fotos, os relatos do roubo de café do avô de Sabará, o afogamento do italiano e do filho da Jurema. Tudo mastigado e datilografado. Algo que qualquer jornalista honesto, qualquer juiz decente, não possa ignorar.

Vocês acham que precisamos de algo mais?

— Sabará deve ter mais arquivos— começou Carlos — Eles não vão estar numa gaveta de escritório. Se ele herdou a paranoia do avô, devem estar escondidos. E guardado por gente perigosa.

— A casa principal dele é uma fortaleza em Santa Teresa — disse Lucas, o conhecimento das ruas falando mais alto. — Vigilância, seguranças, cachorros. Entrar lá é suicídio.

Ana limpou o prato pensativamente. — Mas ele deve ter um lugar… menos óbvio. Um escritório reservado, um cofre... Algo ligado à vida pública dele, não à privada. Algo que ele acesse com uma certa… normalidade cívica.

Paulo ergueu os olhos do prato. — O Clube. O clube militar onde ele e os outros oficiais se reúnem. Ele deve ter uma sala lá, um armário. É um lugar com movimento, mas também com privacidade para os deles. E a arrogância deles é tanta que podem guardar coisas lá, pensando que ninguém do "outro lado" ousaria chegar perto.

Laura concordou com a cabeça, os olhos brilhando com o desafio. — É mais plausível. Infiltrar um clube é difícil, mas não como uma casa fortificada. Precisamos de um pretexto. Serviço de entrega? Manutenção?

Alice, que recolhia os pratos, soltou uma risada baixa. — Entrega de bebida, meninos. Todo clube desses consome rios de uísque importado. Conheço um sujeito no porto, velho comunista ranzinza, que distribui para meia dúzia desses antros. Ele detesta os fardados, mas o dinheiro é bom. Talvez ele precise de um ajudante novo… temporário.

Um sorriso lento se espalhou pelo rosto de Lucas. Era o tipo de abertura que funcionava. Um trabalho sujo, dentro do sistema de abastecimento deles.

— É por aí — disse Carlos, já visualizando o plano. — Um de nós entra como ajudante do distribuidor. Mapeia o clube, localiza a sala do Sabará, os horários. Os outros ficam na retaguarda, preparando o documento final. Quando tivermos a localização exata do que procuramos, fazemos a extração em um momento de vulnerabilidade.

Olharam ao redor da redação em organização. Era para isso que aquele espaço servia. Não para imprimir notícias do dia, mas para produzir a bomba de verdade que poderia desestabilizar um pilar da repressão. O Correio Matutino renasceria por uma noite apenas, para publicar a notícia mais importante de sua história.

— Então é isso — resumiu Paulo, sua voz firme novamente. — Organizamos a redação, produzimos o dossiê final, e Lucas se infiltra no clube com o contato do porto. Encontramos o arquivo sombrio do coronel.

Alice assentiu, aprovando o plano com a sabedoria de quem viu muitos planos nascerem e morrerem naquela cidade. — E enquanto vocês tramam a revolução dos papéis, eu garanto que a pança de vocês não fica vazia. Até herói precisa de um bom macarrão.

O cheiro de alho e fiambre ainda pairava no ar, misturando-se agora ao cheiro de tinta, papel e determinação. A noite caía sobre a Lapa, e dentro do sobrado do Correio Matutino, uma máquina diferente começava a funcionar. Não a de imprimir notícias, mas a de forjar justiça. A próxima etapa da caça ao arquivo das sombras do Coronel Sabará estava prestes a começar.

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