A descida para o porão foi como entrar em outra camada da cidade, uma veia subterrânea e quente. O cheiro era de álcool de mimeógrafo, papel úmido, fumo barato e café forte. A luz era fraca, vinda de uma lâmpada nua pendurada por um fio.
E sentado — ou melhor, instalado — em uma cadeira de balanço ao fundo, como um monarca em seu trono improvisado, estava uma figura que parou o coração dos cinco jovens. Era uma presença que ocupava todo o espaço, mesmo sentada. O rosto, marcado pelo tempo e pelas brigas, era emoldurado por um lenço de seda amarrado na cabeça. Vestia um paletó listrado sobre uma camisa aberta no peito, e calças de linho claras. Na mão, um cigarro de palha soltava uma fumaça lenta e constante. Os olhos, inteligentíssimos e cansados, pousaram neles com um misto de curiosidade e imediata avaliação.
Era Madame Satã. O mito vivo da Lapa. O malandro lendário, dançarino, capoeirista, preso incontáveis vezes, temido e admirado. Uma figura dos jornais policiais e das histórias orais que corriam de boca em boca. Ver aquela lenda, já um tanto surrada pelo tempo mas com uma aura indomável intacta, naquele porão escuro, foi um choque quase tão grande quanto encontrar Bárbara dos Prazeres.
Ele — ou ela, na apresentação que preferisse naquele momento — puxou uma longa baforada, deixou a fumaça escapar lentamente pelos lábios finos e falou, a voz um arrastar grave de pedras e seda:
"Alice, minha rainha das ruínas, que encrenca é essa que você desce pra minha cova agora? Trouxe uns passarinhos assustados pra mim criar?" O sotaque era carregado, a cadência teatral.
Alice Cavalo de Pau empurrou os jovens para frente. "São especiais, João. Vieram da Rua das Sombras. Com um presente da Dama de Vermelho."
O que aconteceu então foi sutil, mas profundo. A postura relaxada de Madame Satã mudou. Os olhos, antes apenas curiosos, ficaram agudamente focados. Ele esmagou o cigarro no chão de terra batida com cuidado excessivo e se inclinou para frente, estudando cada rosto jovem, parando por último no diário que Lucas apertava contra o corpo.
"Da Barbarinha?," a voz de Madame Satã saiu mais baixa, quase reverente. "Ela não se manifesta por qualquer coisa. Não desde... bem, desde tempos que vocês nem sonham." Ele ergueu um olhar para Alice. "É seguro?"
"A Barbarinha achou que sim. E eu confio no faro dela mais do que no de qualquer cachorro da polícia."
Madame Satã assentiu lentamente, como se uma verdade importante tivesse sido confirmada. Então, seu olhar voltou-se para o grupo, e uma expressão mais gentil — ainda que cética — suavizou seus traços duros.
"Sentem, crianças. Não fiquem aí parecendo vara de pescar no cais." Ele gesticulou com a mão para alguns caixotes de madeira virados. "Alice diz que vocês têm uma pólvora. E eu conheço pólvora. Já usei de todo tipo. A que estoura nos fogos, a que sai do cano de uma arma... e a que está impressa em papel." Seus olhos cintilaram. "A última é a que mais dói nos poderosos. Porque mancha a imagem. E imagem, pra essa gente, é tudo."
Lucas, sentindo-se um pouco mais seguro — ou talvez apenas anestesiado por tanta surpresa —, estendeu o diário. "Ela... Bárbara... nos deu isso. Disse que tem segredos. Do avô de um coronel."
Madame Satã não pegou o diário imediatamente. Olhou para ele como se fosse um artefato sagrado, ou uma cobra venenosa. Finalmente, estendeu a mão, e seus dedos, fortes e nodosos, fecharam-se sobre o couro.
"O passado sempre volta para morder o presente," ele murmurou, abrindo o livro na página marcada. Seus olhos, acostumados a ler nas entrelinhas da vida e da lei, percorreram a escrita elegante de Bárbara. Um sorriso lento, feio e lindo ao mesmo tempo, surgiu em seu rosto. "Ah... mas essa mordida é venenosa. É do bom."
Ele fechou o diário com um baque suave. "Isso aqui não é só um segredo. É uma narrativa. A história de um homem 'respeitável' que é, na verdade, o neto de um assassino e ladrão. E o melhor: está tudo aqui. Datas, nomes, até a quantia roubada. Em libras." Ele olhou para eles. "Vocês sabem o que isso significa?"
"Que podemos denunciar," disse Ana, sua voz cheia de esperança renovada.
"Denunciar?," Madame Satã riu, um som rouco. "Para quem? Para os jornais que são censurados? Para a polícia que é comandada pelo próprio coronel? Não, minha flor. Isso aqui é para operações especiais."
Ele se levantou, e sua postura e elegância eram impressionantes. Caminhou até uma mesa coberta com panos, sob a qual havia o formato familiar de um mimeógrafo. "Isso aqui vai ser copiado. Várias vezes. Uma cópia vai para um advogado de esquerda que eu conheço, que sabe como usar isso para paralisar uma investigação ou abrir um processo que vai ser um espinho no sapato deles por anos. Outra vai para um padre progressista que tem contatos no exterior. Ele sabe fazer chegar às mãos de um jornalista estrangeiro. O escândalo internacional é a coisa que essa ditadura mais teme."
Ele virou-se, encarando-os. "Mas há um preço. O coronel, quando sentir o cheiro disso, vai mover o inferno e a terra para encontrar a fonte. Ele e o DOI. Vocês serão caçados. Mais do que já são. Vocês estão prontos para isso? Porque uma vez que essa roda comece a girar, não há volta."
O ar no porão ficou pesado. A oferta de Alice não era apenas ajuda. Era uma conscrição para uma guerra suja, subterrânea, perigosíssima. E seu general era uma lenda viva da marginalidade carioca.
Madame Satã viu a hesitação neles. Sentou-se novamente, acendeu outro cigarro.
"A Barbarinha os escolheu. Alice os trouxe até mim. O destino, ou a loucura dessa cidade, está lhes dando uma chance. Mas a escolha final...", ele apontou o cigarro na direção deles, a ponta incandescente traçando um arco no ar escuro, "...a escolha final é sempre de quem tem o fogo na mão. E o fogo, agora, é de vocês."
O silêncio que se seguiu foi preenchido apenas pelo zumbido da lâmpada e pelo som distante de um bonde na rua acima. Eles estavam no covil da resistência mais improvável do Rio, com duas figuras lendárias os olhando, esperando. O diário de Bárbara dos Prazeres pesava como um bloco de concreto nas mãos de Lucas. Era a hora de decidir: devolver a pólvora às sombras, ou acender o pavio.
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