segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

O Arquivo das Sombras: 1968 (Parte IX)

Mas havia um problema: no diário nao havia nomes. eles só sabiam que o seu persecutor era o Coronel Sabará, mas não se tinha nenhuma informação sobre a arvore genealógica do coronel, que os indicaria quem era o antepassado criminoso.

O clima no porão mudou instantaneamente. A revelação sobre a ausência dos nomes no diário já era um golpe frio na estratégia. A necessidade de uma incursão aos Arquivos Nacionais (um prédio pesadamente vigiado) acrescentava uma camada de risco quase insana. O cansaço e a tensão acumulada pesavam sobre todos.

Foi nesse momento de suspensão frágil, enquanto Madame Satã tentava distraí-los com histórias da velha Lapa — "Eu já dancei com Carmen Miranda antes desse nariz de fruta, pode acreditar!" — que o som veio.

Toc. Toc-toc. Toc.

Um código. Mas não o deles. Um ritmo diferente, mais insistente, mais impaciente.

Toda a expressão descontraída de Madame Satã evaporou. Seus olhos afiados se encontraram com os de Alice Cavalo de Pau num instante de alarme silencioso. Alice levantou-se sem fazer ruído, deslizando para uma fenda na parede de tijolos de onde podia espiar a rua por uma minúscula brecha.

"É o mensageiro," ela sussurrou, voltando-se. "O outro mensageiro. O que serve aos caveiras do quartel."

O ar pareceu ser sugado do porão. Um "emissário" comprando cocaína para os soldados não era um cliente qualquer. Era um elo direto, tóxico e perigosíssimo, com o próprio aparelho de repressão. Sua presença ali, naquele exato momento, era uma coincidência aterradora — ou algo pior.

Madame Satã fez um gesto rápido e decisivo para os jovens, apontando para o cômodo do altar. "Lá. Agora. Silêncio de tumba."

Eles não precisaram ser mandados duas vezes. Em segundos, os cinco se esgueiraram para trás da cortina de veludo, deixando apenas uma fresta mínima. O cômodo estava escuro, apenas a luz residual das velas apagadas. O cheiro de cachaça e fumo ainda pairava, mas agora misturava-se ao cheiro do medo.

Do lado de fora, ouviram Madame Satã arrastar uma cadeira e dizer, com uma voz completamente transformada — áspera, cansada, a voz de uma velha desiludida:

"Tá aberto. Entre logo e não deixe o calor escapar, que tá frio a alma."

A porta rangeu. Passos pesados de botas mal cuidados desceram os degraus. Uma voz masculina, jovem mas gastada pelo vício, falou:

"Madame. O pedido de sempre. O dobro hoje. Os homem tão de plantão pesado, caçando uns ratinhos pela cidade. Precisam ficar ligados."

"Hmm," a voz de Madame Satã soou desinteressada. "Dinheiro adiantado, você sabe. E eu não me importo com o plantão de ninguém. Só com o meu."

Houve o som de cédulas sendo contadas. O silêncio que se seguiu foi tenso. Depois, a voz do emissário novamente, mais baixa, como se se inclinasse:

"Falando nisso... os 'ratinhos'. Não seriam uns cinco? Estudantinhos? O Coronel Sabará tá pessoalmente interessado. Diz que sumiram perto do Arco do Teles. Se por acaso... alguma coisa, alguém diferente tivesse aparecido por aqui... o Coronel pagaria bem. Muito bem. Mais que essa porcaria."

Dentro do cômodo escuro, os corpos dos cinco jovens congelaram. Laura agarrou o braço de Ana com tanta força que os dedos branquearam. Lucas sentiu o suor escorrer por suas costas. Carlos prendeu a respiração.

A resposta de Madame Satã veio lenta, carregada de um cínico desdém:

"Menino, eu vejo tanta coisa 'diferente' passar pela Lapa que não sei nem meu nome direito. Vira e mexe um fantasma, um bêbado, um amor que deu errado... Tudo parece igual depois de um tempo. Seu coronel que cuide dos ratos dele. Eu cuido do meu tabaco."

Ela deve ter entregado o pacote, porque houve um ruído de papel sendo amassado. O emissário pareceu hesitar, frustrado.

"Bom. É só... fica de olho. O Coronel não esquece um favor. E não perdoa uma afronta."

Os passos subiram os degraus. A porta fechou-se.

Mas Madame Satã não se moveu. Eles a ouviam respirar fundo do lado de fora. Passaram-se longos, agonizantes minutos. Então, a cortina foi puxada.

O rosto dela não era mais o de uma anfitriã ou de uma generalita. Era o de uma estrategista encurralada, calculando risco em tempo real.

"Vocês ouviram," ela disse, sem rodeios. "Sabará sabe que sumiram no Arco. E agora ele está soltando os cachorros — e os viciados — para farejar. Ele está pessoalmente interessado. Isso é muito, muito ruim."

Ela olhou para eles, e seu olhar era grave.

"O tempo acabou. Não podemos esperar a noite. Precisamos dos nomes hoje. E eles," ela apontou para o altar com um movimento de cabeça, "já estão trabalhando. Mas nós também temos que nos mover. Os Arquivos Nacionais durante o dia são uma fortaleza. Mas tem uma feira de livros velhos na praça em frente, muita gente, muita confusão. E tem um porão de acesso antigo, que eu conheço, que leva aos depósitos de documentos não catalogados... a parte suja da história."

Ela se aproximou, sua voz um sussurro urgente.

"É um risco monstruoso. Mas ficar aqui é ser pego como rato. E agora, com o diário sem nome, é a única jogada. Quem vai? Não podem ir todos."

Os olhos do grupo se encontraram. A fuga, o pacto, a perseguição... tudo culminava naquela decisão. Ir atrás do nome que daria poder ao segredo, entrando no ventre do próprio Estado, sob a luz do dia, enquanto o coronel os caçava.

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