A pasta pesada sob o braço parecia ganhar um calor próprio, uma radioatividade moral que Carlos sentia através do catelã. Ao dobrar a esquina da Avenida Rio Branco, sua rotina de fuga — sempre variar o caminho, sempre observar reflexos em vitrines — fez com que seus olhos escaneassem automaticamente o entorno.
E foi então que viu. Estacionado de forma um pouco desleixada, quase bloqueando uma saída de garagem, estava um Ford Galaxie 68, cor areia. Comum. Exceto por um detalhe: a pequena antena de rádio extra no para-lama traseiro, e o adesivo circular e discreto, quase imperceptível, no para-brisa dianteiro: o logo do Jornal O Globo.
O sangue pareceu esfriar nas veias de Carlos. Ele conhecia aquele truque. Durante uma palestra na faculdade, um jornalista veterano, bêbado e amargurado, contara como o DOI-Codi e outros órgãos usavam carros de empresas de mídia — especialmente do maior jornal do país — para vigilância e deslocamento discreto. "Ninguém desconfia de um carro do Globo parado numa esquina. Parece um repórter atrás de furo. Mas dentro, é caveira atrás de sangue", dissera o homem, antes de ser amparado para fora do bar pelos amigos.
Carlos não pensou. Seu corpo reagiu antes da mente. Continuou caminhando, sem acelerar o passo, sem olhar para trás. Um homem apressado chama atenção. Um estagiário com uma pasta grossa, andando com propósito, não.
Em vez de seguir direto pela Uruguaiana em direção à Lapa, ele virou à direita na primeira rua, aparentemente absorto em seus pensamentos. No meio do quarteirão, entrou em uma pequena papelaria, fingindo examinar cadernos na vitrine enquanto, pelo canto do olho, observava a rua.
Passaram trinta segundos. Um minuto. E então, o Galaxie areia passou devagar pela esquina que ele acabara de virar. O vidro escurecido do passageiro dianteiro estava levemente aberto. Ele não viu rostos, mas sentiu o peso do olhar.
Eles não estão ali por acaso. Estão seguindo a mim.
A constatação era gelada e clara. O funcionário corrupto do Arquivo? Alguém no caminho? Ou uma denúncia anônima sobre o "estagiário" que pagava por documentos sigilosos? Não importava. O fato era que o cerco, que eles achavam estar armando contra Sabará, também se fechava sobre eles.
Carlos saiu da papelaria pelo fundo, uma saída que dava em um pátio de serviço cheio de caixas de lixo. Conhecia aquele beco de suas andanças pela cidade quando o dinheiro do ônibus era pouco. Seguiu por uma série de travessas, pátios internos e passagens entre prédios, um labirinto urbano que só os moradores de rua e os fugitivos conheciam. Dobrou a pasta dentro do paletó, tentando disfarçar seu volume.
O caminho até a casa de Alice Cavalo de Pau, que deveria levar vinte minutos, levou quase uma hora. Ele entrava em lojas, subia e descia escadas de prédios comerciais, trocava de calçada. Em um ponto, viu o mesmo Galaxie, mais distante, circulando como um tubarão perdendo o rastro do sangue.
Quando finalmente alcançou a Travessa do Comércio, o suor ensopava sua camisa sob o terno. A adrenalina latejava em suas têmporas. Ele não bateu na porta principal. Seguiu até o fundo do beco, para uma porta de serviço quase invisível coberta de hera, que dava direto para os fundos do bordel desativado. Era a entrada de emergência que Alice lhes mostrara.
Ao descer a escada íngreme para o porão, sua respiração ainda era ofegante. O grupo estava reunido em volta da mesa, onde Paulo trabalhava em outro documento. Todos se viraram ao vê-lo entrar, pálido e com a pasta apertada contra o corpo.
"Consegui," Carlos anunciou, colocando a pasta sobre a mesa com um baque solene. "As cópias estão aqui. Tudo autenticado."
O alívio nos rostos durou um segundo. Porque Carlos completou, a voz tensa:
"Mas vieram atrás de mim. Carro do Globo, antena de rádio, vidro escuro. Deu uma volta enorme para despistar. Acho que me perderam, mas... eles sabem que alguém esteve no Arquivo atrás dos Sabará. E estão procurando."
O silêncio que se seguiu foi carregado. Madame Satã fechou os olhos por um momento, processando. "O funcionário se assustou com a visita do 'estagiário' e ligou para algum contato do governo para se proteger. Ou o próprio Sabará tem alguém vigiando o Arquivo depois que a Anita apareceu. De qualquer forma..." Ela abriu os olhos, focados e duros. "...o tempo acabou de vez. Eles não vão apenas nos caçar. Vão tentar chegar aqui. Temos que mover a bomba agora. Hoje."
Ela olhou para a pasta, depois para o grupo. O plano de usar as informações com calma, de forma estratégica, evaporara. Agora era guerra de guerrilha. E eles tinham a arma nas mãos.
"Precisamos escolher o alvo," disse Lucas, sua mente de escritor já formatando a narrativa do ataque. "Vazamos tudo para um jornal de oposição no exterior? Mandamos cópias anônimas para todos os juízes da corte? Ou... usamos isso para chantagear o próprio Sabará, para ele nos dar um salvo-conduto?"
Madame Satã sorriu, um sorriso que não tinha nada de humano. "Por que não os dois? Primeiro, assustamos o coronel com um gostinho do que temos. Mostramos que sabemos do avô assassino. Pedimos algo em troca do silêncio... algo como a soltura de um preso político específico, um nome que ele possa 'arranjar'. E ao mesmo tempo, Lucas, você e Carlos preparam um resumo bom, sujo e pronto para ser enviado por canais seguros para o Le Monde ou para o Washington Post. Cobrimos todas as saídas."
Era um movimento ousado e perigosíssimo. Brincar de gato e rato com o próprio tigre. Mas era a única jogada que lhes restava.
Ana ergueu a pasta. "Então vamos abrir nosso arsenal. E decidir qual bala atirar primeiro."
O Arquivo das Sombras estava aberto. E a luz do dia, cruel e reveladora, estava prestes a entrar.
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