segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

O Arquivo das Sombras: 1968 (Parte XXVIII)

A cena se desdobrou com a velocidade de um corte de cinema. O Fusca verde-abacate, com seu ronco barulhento, não era um salvador anônimo. Ao volante, com as mãos calejadas firmes no guidão, estava o Caboclo, seu rosto impassível mas os olhos atentos a cada movimento na estrada. E no banco do carona, recostada com a majestade de uma rainha no seu trono improvisado, estava Madame Satã.

Ela abriu a porta do passageiro traseiro com um gesto imperioso e soltou um berro que rasgou o ar:

"Andem logo, porra! Tão fazendo hora pra foto?"

O alívio foi instantâneo e avassalador. Ana e Paulo não pensaram duas vezes. Ana se jogou no banco de trás, dividindo espaço com uma pilha de redes de pesca velhas. Paulo ocupou o banco atrás do Caboclo.

Mal a porta bateu, o Caboclo acelerou. O Fusca arrancou, levantando poeira. O vento agitou os cabelos de todos. Foi então que Madame Satã soltou uma gargalhada triunfante, virando-se no banco para encarar os dois.

"Hahaha! Vocês acham mesmo que eu, Madame Satã, iria ficar sentada na palafita rezando, meus amores? Logo euzinha?" Ela bateu no ombro do Caboclo. "Quando o Nato contou do aeroporto, esse cabra aqui já tava ligando o motor. A gente não abandona os nossos. Agora, fala: como foi o sarilho?"

Enquanto o Fusca cortava caminhos por ruas esburacadas da Ilha, Ana contou, em palavras entrecortadas, sobre Rafael. Sobre o irmão sendo o contato. Sobre a armadilha. Sobre a virada dele.

Madame Satã assobiou, impressionada. "O irmão militar... virou casaca no meio do baile. Isso é fogo, crianças. Fogo bom e perigoso." Seu olhar ficou sério. "Ele tá dentro agora. É nossa faca na bota deles. Mas se a faca escorregar..."

A ameaça pairou no ar abafado do carro.

"E agora? Para onde?", perguntou Paulo, olhando pela janela as casas simples darem lugar a áreas cobertas de vegetação.

"Agora?", Madame Satã fez um gesto com a mão, como se varresse o plano anterior. "A gente vai pra casa. Pra casa da resistência." Ela trocou um olhar com o Caboclo, que acenou com a cabeça. "O Caboclo vai nos deixar na Pedra do Sal. De lá, a gente entra de volta na cidade pela zona portuária. Tenho um esconderijo. Num sobrado onde funcionava a redação de um jornalzinho... clandestino. Fecharam a boca deles, mas a porta ainda abre pra gente."

Era um movimento ousadíssimo. Voltar para o Centro, para a área portuária, justamente onde a vigilância poderia ser maior após o vazamento do rádio. Mas também era o lugar onde Madame Satã era mais poderosa, onde suas conexões eram mais profundas. Um jornal clandestino fechado era o esconderijo perfeito: discreto, com infraestrutura para comunicação e, acima de tudo, um símbolo da luta que continuava.

O Fusca seguiu até a comunidade de pescadores para aguardar a saída para a regata no dia seguinte.

Logo pela manhã seguiram juntos até o ponto escondido da orla onde Caboclo atracava o seu velho barco a motor. Eles navegaram pela Baía até que chegaram lá, perto dos velhos armazéns. 

A Pedra do Sal, marco histórico da resistência cultural negra carioca, era seu portal de volta. Desceram do barco sob a luz intensa do meio dia. O Caboclo apenas acenou, seu papel cumprido, e desapareceu dentro do barco.

Madame Satã liderou o grupo por becos estreitos e escadarias, sombras entre os imensos galpões do porto. Finalmente, parou em frente a um sobrado de dois andares, com a fachada descascada e as janelas do primeiro andar tapadas com madeira. Uma placa pequena e quase ilegível ainda estava pregada na porta: "Correio Matutino".

Ela bateu na porta: duas vezes rapido, duas vezes lento, duas vezes rápido. Alguns segundos depois, a porta se abriu alguns centímetros, travada por uma corrente. Um olho apareceu na fresta, sob o arco de um bigode fininho e bem aparado. Acima do olho, a aba de uma boina marrom.

"Madame," a voz saiu baixa, sem surpresa.

"Abra o caminho, Márcio. Trouxe gente da resistência."

A corrente caiu. A porta se abriu completamente, revelando Márcio, um homem magro e de postura ereta, vestindo um cardigã puído sobre uma camisa social. Ele avaliou o grupo com um olhar rápido e profissional, sem julgamento, apenas registro. Acenou com a cabeça para Madame Satã e fez um gesto para que entrassem.

Eles passaram por um corredor estreito que cheirava a repolho cozido e cera de chão, e então Márcio abriu outra porta. O ar que saiu de lá era diferente: o cheiro ácido e inconfundível de tinta de impressora, misturado a papel velho e poeira secular.

Era uma sala grande, iluminada fracamente por uma janela alta coberta de fuligem. Máquinas de escrever Underwood e Remington, cobertas com panos brancos, pareciam fantasmas de uma batalha passada. Pilhas de jornais amarelados com o cabeçalho "Correio Matutino" amontoavam-se em cantos. Mesas de composição de madeira, com gavetas de tipos móveis, estavam silenciosas. Era uma cápsula do tempo da resistência, preservada.

"O andar de cima tá vazio. Tem colchões, um fogareiro. O banheiro é no fim do corredor," informou Márcio, sua voz sempre contida. "Eu fico na portaria. Se vier visita indesejada, eu toco o sino da escada duas vezes. Vocês sobem pro telhado pelo alçapão no banheiro." Era um homem de poucas palavras e muitos protocolos.

"Obrigada, Márcio. Você é um anjo de guarda, amado." disse Madame Satã, com um carinho no bigode em tom de genuíno afeto.

Márcio quase sorriu, o rosto ficando vermelho. Apenas assentiu e saiu, fechando a porta atrás de si. O grupo estava sozinho no santuário empoeirado.

Madame Satã acendeu uma lâmpada de abajur verde sobre uma mesa.

"Bem-vindos à redação do Correio Matutino," anunciou. "Ou ao que sobrou dele. Aqui a gente não só se esconde. A gente se prepara. Porque agora, com o dossiê e com um pé dentro do quartel, a gente não vai só fugir. A gente vai atacar. E este...", ela passou a mão sobre a capa empoeirada de uma máquina de escrever, "...este vai ser nosso canhão."

O Arquivo das Sombras tinha encontrado seu novo quartel-general. No coração da zona portuária, protegido por um homem de bigode e boina, eles se reagrupavam não como fugitivos, mas como uma célula de guerrilha informacional. A imprensa silenciada pela ditadura abrigava, agora, os arquitetos de sua próxima e mais devastadora manchete.

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