A certeza de que eram peças de um plano maior, arquitetado por uma força ancestral, não os paralisou. Pelo contrário. Os galvanizou. O medo deu lugar a uma determinação feroz e calma. Eles não estavam mais à mercê do caos; estavam cumprindo uma trajetória.
"Precisamos de um meio de comunicação à prova de censura," disse Carlos, voltando ao pragmatismo. "Algo que não dependa dos correios ou dos telefones grampeados do Rio."
Dona Tonha, fumando seu cachimbo, inclinou a cabeça. "Tem o rádio de ondas curtas do seu Zé Lopes, no povoado a 15 km daqui. Ele é radioamador. Fala com o mundo todo. E odeia o governo desde a queda de Jango. Se vocês tiverem um texto, ele transmite. Vira código, vira mensagem, vira o que for."
Era uma peça crucial. O rádio amador era uma rede subterrânea e global, difícil de rastrear e silenciar completamente.
"E as provas físicas? As fotos, o diário?" perguntou Paulo. "Não podemos mandar pelo rádio."
"Precisamos de um mensageiro tão fantasma quanto a Bárbara," disse Madame Satã. "Alguém que saia daqui e desapareça antes que o coronel perceba que o ataque veio do seu próprio quintal ancestral."
Todos os olhos se voltaram para Alice Cavalo de Pau. Ela, que conhecia todos os subterrâneos, todos os rostos, todos os preços do silêncio e da lealdade nas margens da sociedade.
Alice não hesitou. "Eu levo. Sei viajar sem ser vista. E conheço um fotógrafo em Juiz de Fora que é anarquista e tem um laboratório próprio. Ele faz cópias perfeitas. Eu levo as originais, ele copia tudo. Daí, uma via vai pro rádio de seu Zé Lopes para virar notícia no exterior. A outra..." ela olhou para Madame Satã, "...a outra via a gente entrega de presente."
"Para o próprio coronel," completou Madame Satã, um sorriso sinistro em seus lábios. "Um pacote especial. Na sua casa. No seu quartel. Com uma carta explicando que temos muito mais, e que se ele não fizer exatamente o que pedirmos — começar pela soltura imediata dos presos políticos que sabemos que ele tem sob custódia —, a próxima entrega será para todos os jornais do Rio e do mundo, com a história completa e o endereço do rio onde o avô dele afogou um bebê."
Era um plano de dois gumes, arriscadíssimo. Chantagem direta contra um homem perigosíssimo, ao mesmo tempo em que soltariam a história no mundo, tornando-a incontrolável.
Lucas pegou sua caneta e um caderno. "Então eu escrevo. Duas versões. Um manifesto para o mundo, com a história de Isabela, de Jurema, do assassinato do italiano, da fuga. Um texto que vai incendiar consciências. E uma carta pessoal para o coronel. Seca. Direta. Com os detalhes que só quem leu o diário da avó dele saberia. A cor da fitinha. O nome 'Augusto'. A queimadura no olho."
Ana se ofereceu para ajudar, sua conexão com Isabela dando autoridade emocional ao texto. Carlos garantiria a precisão jurídica, os nomes, as datas. Paulo prepararia um envelope e um selo falsificados, se necessário.
Enquanto trabalhavam, a noite caiu sobre a terra dos Sabará. Dona Tonha, na varanda, fitava a escuridão na direção do rio. Talvez, pela primeira vez, o choro que ela ouviria nesta noite não seria apenas de dor, mas de expectativa. A justiça, como uma semente guardada por um século no diário de uma bruxa, finalmente brotava no solo onde a injustiça havia sido plantada.
O grupo dos 7, completo em seu propósito, movia-se. A próxima jogada era deles. E o primeiro movimento seria feito por Alice, a cafetina-fantasma, sumindo na madrugada com o Arquivo das Sombras literalmente colado ao corpo, rumo ao fotógrafo anarquista e ao primeiro ato de uma revelação que abalaria os alicerces podres de uma dinastia de crueldade.
A cabana de Dona Tonha se transformou, nas horas seguintes, em um quartel-general febril. A energia era de concentração absoluta, cada um desempenhando seu papel na sinfonia da vingança justa.
Lucas e Ana se debruçaram sobre as provas. Lucas, com a frieza crua do repórter, estruturou o Manifesto para o Mundo. Ele começava com um título contundente: "A SANGUE E CAFÉ: A VERDADEIRA HISTÓRIA DA FAMÍLIA SABARÁ, DE BARBACENA AO DOI-CODI". O texto costurava os fios: o infanticídio no rio, o assassinato do imigrante Luigi, a tortura e o sequestro do bebê de Isabela, a fuga covarde, a reconstrução da fortuna no Rio, até chegar na figura do coronel, "herdeiro não de uma tradição de honra, mas de um legado de estupros, assassinatos e loucura induzida". Ana injetava a alma, trechos das cartas de Isabela, a descrição da fitinha cor-de-rosa, o desespero materno. Era um documento para incendiar a imprensa internacional.
Paralelamente, Carlos redigia a Carta para o Coronel. Um documento seco, jurídico em sua precisão assassina. Listava os crimes (com datas e nomes), mencionava a existência das fotografias do corpo de Isabela, citava trechos do diário que só a família poderia saber. E então, as exigências: 1) A soltura imediata e silenciosa dos presos políticos sob custódia do DOI-CODI; 2) A renúncia do general e o fim do regime militar. A ameaça final: "A não libertação no prazo de 48 horas resultará na divulgação integral deste dossiê e de todas as suas provas anexas à imprensa nacional e internacional, com destaque para a origem de sua fortuna familiar no infanticídio e na falsificação de linhagem."
Paulo, com suas mãos de artífice, trabalhou nas apresentações. Para o mundo, ele preparou uma cópia impecável do selo do "Comitê Internacional pela Verdade Histórica Mundial", um nome pomposo e fantasma. Para o coronel, ele forjou um envelope simples, mas com um pequeno detalhe na borda: uma minúscula rosa estilizada, quase imperceptível — uma assinatura silenciosa de Isabela.
Enquanto isso, Alice se preparava para a viagem. Dona Tonha lhe deu roupas de camponesa, um chapéu de palha e um cesto com raízes e ervas. "Ninguém mexe numa benzedeira que leva seus remédios," garantiu Tonha. As provas originais (o diário florido, as fotos, as cartas) foram envolvidas em um pano à prova d'água e costuradas no forro do cesto. Ela partiria antes do amanhecer.
Madame Satã e Laura ficaram responsáveis pela segurança e pelo contato com Nelsinho. Ele não podia ficar com o caminhão estacionado por muito tempo. Combinaram um ponto de encontro futuro, dois dias depois, em uma cidade vizinha maior.
Na madrugada, com o céu ainda cor de vinho, o grupo se reuniu na porta dos fundos. Alice, transformada em uma senhora do sertão, parecia outra pessoa.
"Lembrem-se," disse Madame Satã, sua voz grave. "Você é o fio mais fino e mais forte. Se cortarem você, o nó ainda estará amarrado, porque a mensagem já estará no ar. Mas não vamos deixar que te cortem."
Alice sorriu, um sorriso que ainda carregava a malícia da Lapa. "Eles não veem as sombras mais antigas, João. Só veem o que querem ver. E eu não quero ser vista." Ela apertou a mão de cada um, um aperto firme. Em Ana, parou um segundo a mais. "Diga para ela que a mensagem vai chegar."
Ana entendeu. Ela. Isabela. Ou a força que a representava.
Sem mais cerimônia, Alice se virou e desapareceu na névoa fria que subia do campo, sua silhueta se dissolvendo rapidamente no caminho para o povoado onde o radioamador e, depois, o fotógrafo anarquista aguardavam.
De volta dentro da casa, o clima era de expectativa ansiosa. O manifesto e a carta estavam prontos. A primeira rajada da tempestade estava a caminho. Restava agora o trabalho de Seu Zé Lopes, o radioamador, e a coragem do fotógrafo em Juiz de Fora.
Lucas olhou para o grupo, os seis restantes. O número sete estava temporariamente desfeito, mas sua energia estava em movimento.
"Agora," ele disse, "nós esperamos. E nos preparamos para a reação. Porque quando o coronel Sabará ler sua carta, o inferno vai se soltar. E nós precisamos estar prontos para não sermos apanhados no fogo cruzado."
Nelsinho deixou Alice na entrada poeirenta do povoado, um aglomerado de casas de adobe e telhas coloniais que parecia adormecido sob o sol da manhã. "O rádio do Zé Lopes é na casa azul, no fim da rua da igreja. Cuidado, ele é desconfiado como tatu na boca do forno," foi sua única despedida, antes do caminhão desaparecer numa nuvem de poeira.
Alice ajustou o chapéu de palha e a cesta de vime no braço. O peso era psicológico, não físico. Sob os maços de alecrim, arruda e guiné, perfumando o ar com um cheiro limpo e medicinal, estavam os envelopes que carregavam a podridão de um século. A ironia não lhe escapou: ela carregava a cura e a doença na mesma cesta.
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