A psicologia, para Ana, nunca foi uma carreira abstrata. Foi uma necessidade visceral. Antes mesmo de entrar na UFRJ, naquele campus da Praia Vermelha que ficava lado a lado com os muros altos do Hospital Psiquiátrico Phillipe Pinel, ela já carregava uma pergunta insistentemente: como uma sociedade cataloga, estigmatiza e esconde a dor que não quer enxergar?
O Pinel era uma presença constante, uma sombra física sobre seus estudos. O som distante de gritos abafados às vezes competia com a voz dos professores. O cheiro de desinfetante barato e desespero atravessava os muros em dias de vento sul. Ana não evitou aquele lugar. Ela se jogou nele. Tornou-se voluntária, depois estagiária. Queria entender.
Foi lá que conheceu Luzia.
Luzia era uma mulher de olhos queimados pelo sol do sertão e agora embaçados por medicamentos pesados. Tinha cerca de cinquenta anos, mas parecia ter oitenta. Seu diagnóstico: esquizofrenia paranóide, com episódios de violência extrema. A história oficial: em um surto de ciúmes, atacara um amante com uma navalha, desfigurando seu rosto com uma série de cortes precisos e brutais.
Toda semana, Ana sentava com ela. E toda semana, Luzia recontava o episódio, sempre com as mesmas palavras, como um roteiro sagrado e traumático. Descrevia o quarto de pensão, o cheiro de cachaça e perfume barato, a sensação do cabo da navalha frio em sua mão. Era um ritual de revivência, uma tentativa desesperada de que alguém, finalmente, ouvisse a verdade por trás daquela violência.
Mas Ana ouvia mais do que a cena do crime. Ouvia a história de uma mulher migrante, sozinha na cidade grande, explorada, ameaçada. Ouvia, nas entrelinhas, a história de legítima defesa transformada em loucura assassina pela justiça de homens.
Certa tarde, Luzia estava particularmente lúcida, os efeitos da medicação um pouco mais brandos. Enquanto Ana a ajudava a tomar água, Luzia segurou seu queixo com uma força surpreendente. Suas mãos eram ásperas como lixa, seus olhos, dois poços de uma lucidez assustadora.
"Você, criança," Luzia disse, sua voz um sussurro rouco que parecia vir das próprias paredes do Pinel. "Você não anda só. E nunca andará."
Ana congelou. Não era uma frase delirante. Era uma declaração. Um conhecimento. Parecia que Luzia via através dela, via as sombras que Ana ainda nem sabia que a acompanhariam: a de Isabela, a de Bárbara, a de Maria Navalha.
"O que você quer dizer, Luzia?"
Mas o momento passou. A névoa dos medicamentos voltou aos olhos da mulher, e ela voltou a murmurar sobre a navalha, o sangue, o grito do homem.
Aquela frase, porém, ficou gravada a fogo na psique de Ana. Tornou-se uma espécie de profecia pessoal. Ela começou a perceber padrões não só nos diagnósticos, mas nas histórias das mulheres no Pinel. Muitas eram como Isabela Sabará: internadas por maridos, por famílias, por serem inconvenientes, rebeldes, ou por terem sofrido violência que o sistema preferia chamar de "loucura".
Quando a perseguição começou e ela se encontrou no porão da Lapa, a frase de Luzia ecoou. Você não anda só. E de fato, não estava. Estava com Lucas, Laura, Paulo, Carlos. E logo, com Madame Satã, Alice, e as presenças invisíveis de Zé, Maria e Bárbara.
Ao encontrar o diário de Isabela e as fotos de seu corpo torturado, Ana não viu apenas uma vítima histórica. Viu uma paciente do mesmo sistema. A mesma máquina que trancafiava Luzia no Pinel em 1968 havia trancado Isabela em Barbacena em 1901. A lógica era a mesma: silenciar a mulher que fala, que denuncia, que se recusa a se curvar.
Sua transformação em Anita, a secretária altiva, foi mais do que um disfarce. Foi uma incorporação. Ela usou a linguagem do poder (a do "desembargador") para infiltrar-se na fortaleza dos arquivos, tal como usava a linguagem da psicologia para infiltrar-se nas fortalezas das mentes no Pinel. Em ambos os casos, ela estava lá para extrair a verdade escondida.
E quando ouviu o choro de bebê na terra de Dona Tonha e fez a conexão com o infanticídio de Jurema, foi sua sensibilidade treinada para escutar o não dito, o trauma transgeracional, que permitiu a ligação. Ana é a ponte emocional do grupo. A tradutora da dor silenciada em ação. A que ouve os gritos das Isabellas e das Luzias através do tempo e do espaço, e os transforma em combustível para a justiça.
Ela sabe, no seu íntimo, que Luzia tinha razão. Ela nunca anda só. Caminha acompanhada por uma legião de vozes silenciadas, e carrega a responsabilidade sagrada de fazer com que, finalmente, sejam ouvidas.
A casa da família de Ana na Tijuca era um modelo de harmonia aparente. Uma casa geminada, bem cuidada, com jardim frontal e cheiro de pão de ló aos domingos. Seu pai, Professor Heitor, era um homem de palavras medidas e ternos discretos, que ensinava História no Pedro II com um cuidado meticuloso de não tocar em nada mais recente que a Proclamação da República. Sua mãe, Dona Celina, era o coração do lar, cujas maiores rebeldias eram uma torta de limão com um toque a mais de licor e o hábito de esconder panfletos subversivos que Ana, mais nova, trazia para casa, queimando-os no forno com as mãos trêmulas.
O medo neles era um membro invisível da família. Um medo polido, educado, que se expressava no sussurro das conversas, no rádio sempre sintonizado em música suave, nas cortinas fechadas ao entardecer. Eles haviam visto colegas sumirem. Ouviam as histórias. A estratégia era a camuflagem perfeita: ser invisivelmente cumpridor da lei, inquestionavelmente normal.
E então havia Rafael, o irmão mais novo. O orgulho silencioso, o filho que internalizou o medo dos pais e o transformou em adesão. Em busca de ordem, disciplina e uma identidade à prova de perseguição, ele entrou para a Escola Preparatória de Cadetes do Ar, a EPCAR. O sonho dourado da classe média assustada que queria estar do lado "certo" do poder. E onde ficava a EPCAR? Em Barbacena.
Sim. Barbacena.
Enquanto Ana, na mesma cidade, arrancava das entranhas do manicômio colonial a prova da tortura de Isabela Sabará, seu irmão Rafael, fardado e de botas polidas, patrulhava os portões de uma instituição irmã em espírito: a Aeronáutica. A mesma força que sustentava a ditadura que ela combatia, que abrigava homens como o Coronel Sabará.
A ironia era um nó de angústia no estômago de Ana. Ela amava o irmão. Lembrava-se do menino que a protegia no balanço do parquinho. Mas agora, ele era parte da máquina. E ela estava em guerra contra essa máquina. Pior: ela estava na cidade dele, cometendo um crime capital contra o Estado, enquanto ele, inadvertidamente, era um símbolo desse Estado.
Essa divisão familiar era o microcosmo do Brasil de 1968. De um lado, o conformismo assustado, a adesão por medo. Do outro, a rebeldia que arrisca tudo. E no meio, laços de sangue sendo esticados até o ponto de ruptura.
Ana nunca contou aos pais sobre seu envolvimento com o grupo. Para eles, ela era apenas uma estudante aplicada, talvez um pouco "idealista demais". A viagem a Barbacena, se soubessem, seria inexplicável. E se descobrissem que ela invadiu um hospício federal, roubou documentos históricos e estava sendo caçada... o medo deles se transformaria em pavor, talvez até em rejeição.
E Rafael... O que ele faria se soubesse? A honra militar, o dever, a lealdade à corporação falariam mais alto? Ele entregaria a própria irmã?
Essa dúvida atormentava Ana mais do que a perseguição do DOI. Era a perseguição interior, a sombra da farda do irmão pairando sobre seus atos. Quando ela viu as fotografias do rosto desfigurado de Isabela, por um instante aterrorizante, viu o rosto de todas as mulheres torturadas, silenciadas pelo poder que seu irmão, de seu posto, ajudava a sustentar.
Isso faz de Ana a personagem talvez mais tragicamente dividida do grupo. Ela não luta apenas contra um inimigo externo. Luta contra o fantasma da desaprovação dos pais e contra o amor por um irmão que está do "outro lado". Sua coragem, portanto, é dupla: a de enfrentar os tanques e a de enfrentar o possível colapso de seu próprio mundo familiar.
E tudo isso se passa em Barbacena, a cidade que virou o palco involuntário do confronto entre as duas metades de sua vida, e do Brasil. Quando ela saiu do manicômio, carregando as provas, parte dela temeu não apenas os soldados genéricos, mas cruzar, em uma esquina, com o olhar confuso e depois horrorizado de seu próprio irmão, Rafael.
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