domingo, 16 de novembro de 2025

O Internato das Almas Sussurrantes (Parte III)

 O som da voz de Sônia, mas destituída de qualquer calor ou amizade, cortou o ar como um golpe de adaga. Seus olhos, agora focados neles com uma intensidade alarmante, não continham traço da jovem que conheciam. Era a voz de uma sacerdotisa, fria e imperiosa, ordenando a captura de intrusos profanos.

"Lá estão eles! Vão pegá-los!"


O feitiço da surpresa quebrou-se. Os homens da Irmandade, que haviam ficado momentaneamente paralisados com a queda do armário, recuperaram a compostura com uma velocidade assustadora. Seus rostos, antes marcados por uma solenidade ritualística, se contraíram em máscaras de fúria pura. O homem com as insígnias, aparentemente o líder, apontou na direção deles com a própria adaga.

"Peguem os intrusos! Não podem profanar o Ritual da Eternidade!"

Ricardo, Claudia e Paulo não esperaram. O instinto de sobrevivência falou mais alto. Eles se viraram e dispararam de volta pela escadaria de madeira, subindo os degraus gastos dois a dois. Os sons de passos pesados ​​e de vozes furiosas os perseguiam de perto. A atmosfera, que já era pesada e fora do tempo, tornou-se eletrizante com o perigo iminente.

A luz das lanternas de bolso dançava loucamente pelas paredes de pedra, criando sombras fugidias que pareciam se contorcer e tentar agarrá-los. O cheiro de querosene e tabaco forte foi substituído pelo odor metálico do medo e pela frieza úmida que agora emanava do portal temporal atrás deles.

Ao alcançarem o topo da escada e entrarem no corredor secreto que levava à despensa, Paulo arriscou um olhar para trás. O que ele viu o fez engasgar.

A cena no salão abaixo estava se desintegrando, mas não da maneira que esperariam. As figuras dos homens e do menino começavam a se tornar translúcidas, como fantasmas de um filme desbotando. No entanto, a figura de Sônia, de túnica branca, permanecia nítida e sólida por um momento mais longo, seus olhos ainda fixos neles com uma frieza inumana. E atrás dela, das sombras mais profundas do salão, algo se mexia. Uma forma amorfa e escura, pulsante, da qual emanava aquele sussurro rasgante que haviam ouvido antes – O Eco. Ele não estava mais apenas no presente ou no passado; estava se alimentando da energia do ritual interrompido, transcendendo a barreira temporal.

A porta da despensa estava à frente. Ricardo a empurrou com força, e eles se jogaram na cozinha escura, tropeçando em baldes e rodos. A porta secreta se fechou atrás deles com um click silencioso, mas eles não pararam. Correram pelo refeitório, o cheiro fantasma de caldo de galinha agora parecendo o aroma de uma refeição funerária.

Eles haviam escapado da captura imediata no passado, mas a um custo terrível.

"Ela... ela nos entregou," ofegou Paulo, encostado na geladeira industrial, seu corpo tremendo incontrolavelmente.

"Não era ela," corrigiu Claudia, seu rosto pálido mas sua mente ainda acelerada. "Era o que eles fizeram com ela. Ela é o 'vaso', lembra? Eles controlam ela. E pior..." Ela fez uma pausa, ouvindo. O som de passos vindos do corredor principal era inconfundível. "Eles sabem que estamos aqui. No presente."

A perseguição não terminou no passado. A Irmandade, através do portal ou através de seus membros remanescentes como o Seu Otávio, estava agora ciente deles. Sônia estava perdida, não apenas fisicamente, mas possuída pela vontade da seita. E O Eco, uma entidade de fome atemporal, havia sido despertado.

Eles estavam encurralados no colégio, no escuro, com um inimigo que operava através do tempo e com sua amiga como uma inimiga involuntária. O plano de resgate havia se transformado em uma luta desesperada pela própria sobrevivência e, talvez, para impedir que uma sombra do passado consumisse o futuro.

O som dos socos contra a porta da despensa ecoava como tiros na quietude da cozinha. Eram pesados, furiosos, mas, crucialmente, pareciam vindos de muito longe, como se atravessassem um denso véu de água. Claudia, com um fio de esperança na voz, sussurrou: "Eles não podem passar. O portal... é uma via de mão única, ou está se fechando."

Estavam livres, mas a vitória era amarga e temporária. A imagem de Sônia, com seus olhos vazios e sua voz traiçoeira, estava queimada em suas retinas.

"Não podemos deixá-la," disse Claudia, sua voz firme, embora suas mãos ainda tremessem. "Ela não é uma deles. Ela é um fantoche. Precisamos de outra passagem. Um jeito de chegar a ela sem usar aquele... portal."

Foi então que Ricardo se lembrou. "O laboratório de química! Aquela porta atrás da estante de reagentes. A fechadura está tão enferrujada que o professor disse que era um armário selado desde os anos 50."

Era um plano frágil, mas era o único que tinham. Saíram da cozinha e voltaram ao corredor principal de ladrilhos hidráulicos. A escuridão era agora mais intensa, e a polidez do piso tornou-se uma armadilha. Seus tênis Reebok, modernos e cheios de estilo, mas com solados de borracha lisa, escorregavam perigosamente a cada passo, forçando-os a andar como patos, com os braços estendidos para se equilibrar. O silêncio era opressivo, quebrado apenas pelo som de sua própria respiração ofegante e do rangido ocasional da estrutura centenária do colégio.

Foi então que ouviram.

Um miado. Baixo, arrastado, cheio de uma angústia que era quase humana. Veio de alguma sombra à sua direita, talvez de um dos jardins internos cujas plantas pareciam garras negras contra os vidros das portas.

Pararam, congelados. O coração de Paulo parecia querer sair pelo peito. "São... são os gatos?" ele sussurrou, lembrando-se do saco jogado no corredor secreto. "Os que o Seu Otávio..."


O miado veio de novo, mais próximo agora. Não era o miado saudável de um animal de rua. Era um som úmido, doloroso, como se a criatura estivesse com os pulmões cheios de água ou... de algo pior.

"Não olhem," ordenou Ricardo, sua voz tensa. "Só andem. Rápido."

Foram em frente, acelerando o passo, tentando ignorar o som que agora parecia segui-los, um arrastar de patas e um miado baixo e persistente que ecoava pelo corredor como uma assombração. A escuridão atrás deles parecia mais espessa, mais viva.

Finalmente, alcançaram a porta dupla do laboratório de química. Empurraram-na, e o cheiro familiar de ácido, éter e poeira os recebeu. O laboratório era um museu de horrores potenciais, com seus esqueletos pendurados, frascos de vidro com espécimes preservados em formol e as longas bancadas de madeira rachada.

No fundo da sala, atrás de uma estante de madeira carcomida cheia de frascos de reagentes vazios e empoeirados, estava a porta. Era baixa, de madeira escura, com uma fechadura de ferro antiga e enormes, completamente coberta por uma crosta de ferrugem laranja. Não tinha maçaneta, apenas um buraco de fechadura que parecia um olho cego e hostil.

Era ali. A próxima passagem para o horror. E atrás deles, no corredor escuro, o miado fantasmagórico do gato se arrastava cada vez mais perto, como um rastreador enviado pelo Eco.

Continua na parte IV...

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