O ano é 2019
O tempo, como o Rio de Janeiro, é uma entidade traiçoeira. Ele avança implacável sobre a orla de Copacabana, sobre os prédios que crescem e caem, mas em alguns lugares, ele simplesmente gruda. O Colégio Pedro II, no Centro, era um desses lugares. A fachada imperial continuava a mesma, um gigante de pedra observando o século XXI com a mesma paciência com que observara o XIX.
Os jovens assustados de 1985 eram agora adultos na casa dos cinquenta. Ricardo era um engenheiro bem-sucedido, casado, com duas filhas. Claudia, uma psicóloga renomada, especializada em trauma, solteira e focada na carreira. Paulo, um contador tranquilo, com uma vida familiar estável em um subúrbio do Rio.
E Sônia.
Sônia nunca conseguiu se livrar completamente daquela tarde. O tempo não curou todas as feridas; algumas ele apenas enterra vivas, e elas coçam por baixo da pele em noites de insônia. Ela nunca se casou. Nunca conseguiu manter um relacionamento. A intimidade despertava um eco de violação, um sussurro daquela sala onde seu próprio corpo havia sido usado como um fantoche. Ela fazia psicanálise desde os doze anos, tentando nomear os demônios que a assombravam: homens de terno em salas com azulejos, soldados sem rosto em porões úmidos, o cheiro de querosene e a visão de um cálice dourado. Seus terapeutas sempre atribuíram isso a pesadelos de uma mente imaginativa e sensível, exacerbados pela turbulência da adolescência nos anos 80.
Nenhum deles, é claro, acreditou quando ela mencionou, de passagem, viajar no tempo.
A vida, porém, tem um senso de ironia mórbido. Ou talvez seja o Eco, brincando com seus brinquedos favoritos.
Os filhos de Ricardo, gêmeas de dezessete anos, eram alunas aplicadas do Colégio Pedro II. A filha de Paulo, um pouco mais nova, também estudava lá. Era uma tradição familiar, um orgulho. Para os pais, era a continuação de um legado de excelência. Para Sônia, que não tinha filhos, era um pesadelo recorrente materializado. Toda vez que visitava a casa de Ricardo e via os uniformes do CPII pendurados, um frio percorria sua espinha.
Foi em um domingo à tarde, durante um churrasco na casa de Ricardo em Jacarepaguá, que o passado decidiu bater à porta. As gêmeas estavam no jardim, rindo de algo no celular. A filha de Paulo as observava, um pouco tímida.
"O colégio tá um máximo, pai," disse uma das gêmeas, entrando para pegar uma bebida. "A gente tá fazendo um trabalho de história sobre o internato. O arquivo do colégio é incrível."
Sônia, que mexia uma taça de vinho sem vontade, congelou.
"É mesmo?" disse Ricardo, forçando uma naturalidade. "Cuidado com as portas trancadas, hein?" A piada soou oca.
"Ah, pai, para," a filha riu. "Mas é que tem uma coisa mais estranha. A gente encontrou umas fotos antigas de uma turma de meninos, dos anos 30, e a Sara," ela apontou para a irmã, "ficou possessa porque jurou de pé junto que viu o vovô Júlio, seu avô, numa das fotos. Só que ele nem estudou no CPII!"
Ricardo e Sônia trocaram um olhar. O avô Júlio de Ricardo tinha morrido jovem, nos anos 50. Era impossível.
"Deve ser só um parecido, querida," disse Claudia, tentando acalmar as águas que só ela e os outros dois entendiam que estavam se agitando.
"Pode ser," a garota concordou, encolhendo os ombros. "Mas foi estranho. E a Mônica," agora apontando para a filha de Paulo, "achou um documento antigo com o nome completo dela. Mônica Silva Ribeiro. Tinha uma lista de nomes, e o dela estava lá, com uma pequena cruz ao lado."
O ar pareceu sair do pulmão de todos. Paulo, que estava na churrasqueira, baixou a espátula.
"Onde vocês acharam isso?" perguntou Sônia, sua voz um fio.
"Numas caixas no porão da biblioteca, Tia Sônia. A tia bibliotecária deixou a gente dar uma olhada. Tinha um monte de coisa da época da ditadura também. Até uma foto de uma mulher que parecia muito com você, Sônia, mas com uma túnica branca. Que loucura, né?"
O silêncio que se seguiu foi mais eloquente que qualquer grito. As crianças, percebendo a mudança no clima, voltaram para o jardim, confusas.
Os quatro amigos – Ricardo, Claudia, Paulo e Sônia – se entreolharam. O passado não estava morto. Não estava nem mesmo passado. A Irmandade da Noção Verdadeira não precisava "voltar" como o Doutor prometera. Eles nunca tinham ido embora. E agora, suas garras se estendiam, silenciosamente, para a próxima geração. Os filhos deles não estavam apenas estudando no mesmo colégio. Eles estavam no mesmo tabuleiro de xadrez, e o jogo, interrompido em 1985, estava prestes a ser retomado. O Eco, afinal, era paciente. E as famílias, ele sabia, eram sua herança mais preciosa. no mesmo tabuleiro de xadrez, e o jogo, interrompido em 1985, estava prestes a ser retomado. O Eco, afinal, era paciente. E as famílias, ele sabia, eram sua herança mais preciosa.
FIM.
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