Caminharam pelo corredor de acesso ao jardim, seus passos ecoando no piso de ladrilhos hidráulicos polidos, com seus padrões geométricos desbotados. A superfície, levemente escorregadia, parecia querer derrubá-los a cada movimento. O cheiro do jantar ainda pairava no ar: um fantasma de caldo de galinha e leite com canela que, em vez de aconchegante, agora cheirava a algo morno e decadente.
A grade da porta que levava ao Jardim das Laranjeiras estava trancada, como esperado. Sem hesitar, seguiram para a cozinha industrial, um cômodo de azulejos brancos e enormes panelas de alumínio polido penduradas, que pareciam olhos na penumbra. Reviraram gavetas e armários, até que Ricardo, ao empurrar uma prateleira cheia de sacos de feijão e arroz, sentiu um click.
Não era um armário. Era uma porta, perfeitamente disfarçada entre os azulejos da parede da despensa. Ela se abriu para dentro, revelando não prateleiras, mas uma escuridão absoluta e um cheiro de terra molhada e madeira centenária.
"É aqui," sussurrou Claudia, seu ceticismo agora totalmente substituído por um temor reverencial. "A passagem do diário."
Sem outra opção, entraram. A porta fechou-se silenciosamente atrás deles, isolando-os por completo. A lanterna iluminou um corredor estreito, forrado de pedra, que dava em uma escadaria íngreme de madeira. Os degraus, de tábuas grossas de peroba ou algo mais pesado, estavam gastos no centro, não pelo tempo, mas por incontáveis passos fantasmas. Apesar da idade evidente, a estrutura era incrivelmente firme.
Mas à medida que desciam, algo começou a mudar. Não era apenas a temperatura, que caía drasticamente. Era a própria textura do ar. O cheiro de mofo e terra foi se transformando, tornando-se mais limpo, mas carregado com odores que não pertenciam à sua época: um leve traço de querosene, o aroma distinto de um tabaco forte e, por fim, o som.
Os ruídos da cidade moderna—o zumbido distante dos carros, o ronco de um ônibus—simplesmente se apagaram. Foram substituídos pelo silêncio pesado da noite, quebrado apenas pelo tinir frágil de um piano. A mesma melodia desafinada e antiga que lendas atribuíam à sala trancada. Só que agora, ela era nítida, real, e vinha de cima, não de baixo.
Paulo congelou, segurando a lanterna com mãos trêmulas. "O que está acontecendo?"
Ricardo olhou para as paredes de pedra. Elas pareciam mais novas, o rebrito mais fresco. "A escada... não está nos levando só para os porões," ele disse, uma realização horrível brotando em sua mente. "Está nos levando para quando."
Era um portal. Não no sentido de ficção científica, mas uma fenda no tempo, um eco materializado da memória do lugar, ativado pela lua nova e pelo sangue derramado—ou pela proximidade do ritual.
Quando seus pés finalmente tocaram o último degrau, eles não estavam em um porão úmido. Estavam em um corredor amplo e bem iluminado, com o mesmo piso de tábuas de madeira do andar superior, mas encerado e brilhante. As paredes eram de um azul claro, e cartazes educativos da época—alguns com slogans cívicos do Estado Novo—estavam pendurados com precisão.
E então, viram.
Através de uma grande porta de vidro fumê, havia uma sala suntuosa, que reconheceram como uma versão "nova" da antiga sala de música. Lá dentro, sob a luz suave de um candelabro de cristal, um grupo de homens vestidos em ternos escuros e bem cortados estava reunido em círculo. Eles não eram figuras sombrias e encapuzadas; eram homens de aspecto respeitável, alguns com barbas bem cuidadas, outros com as insígnias de cargos públicos. No centro do círculo, de joelhos e com as mãos atadas, estava um menino de não mais de doze anos. Ele usava o uniforme do internato, seu rosto pálido e sujo de lágrimas silenciosas. Seus olhos, wide com um terror primordial, fitavam o vazio.
Um dos homens, de costas para eles, erguia uma adaga antiga, sua lâmina refletindo a luz das chamas de velas que os jovens não podiam ver, mas cujo calor e cheiro de cera de abelha conseguiam sentir.
Era a Irmandade da Noção Verdadeira. Em plena atividade. Nos anos 30.
Eles não estavam apenas testemunhando um fantasma do passado. Estavam testemunhando o próprio mecanismo do horror, o momento em que Sônia, em algum lugar no presente, estava destinada a se tornar a próxima peça. O portal não era uma fuga; era uma lição. E a lição era que o mal não era uma mancha antiga na história do colégio. Era sua fundação secreta, e estava prestes a ser reativada.
O ar nos pulmões dos três jovens pareceu gelar. Eles se encolheram ainda mais atrás do massivo armário de ferro com porta de vidro, cujo interior abrigava frascos de vidro âmbar com rótulos desbotados e instrumentos cirúrgicos de um design antigo e cruel. As bandeiras vermelhas com a suástica negra ao centro, penduradas nas paredes de azulejos, não eram meros adereços de um ritual arcaico; eram uma declaração de aliança, uma profissão de fé sombria que ligava a Irmandade da Noção Verdadeira ao coração do horror que assolava a Europa.
A cena era de uma clareza aterradora. O homem de terno que parecia farda, seu peito um mosaico de metal e vaidade, proferia palavras que ecoavam nos corredores da História, mas distorcidas por uma lente de loucura e ocultismo. O "graal" não era uma metáfora. Era uma promessa de poder eterno, comprado com sangue inocente.
E então, a porta no fundo da sala se abriu.
A moça que entrou era uma visão etérea e perturbadora. Sua túnica branca, de um linho finíssimo, esvoaçava com seus movimentos, revelando a silhueta sob o tecido. Seus longos cabelos ondulados, soltos até a cintura, eram uma cascata de seda escura. Os pés descalços pisavam com uma solenidade fantasmagórica no piso de madeira. Nos braços, ela carregava o grande cálice dourado, um artefato de beleza e perversão.
Foi Paulo quem quase soltou um grito abafado. Ele agarrou o braço de Ricardo com uma força desesperada.
Era Sônia.
Mas não a Sônia que conheciam. Seus olhos, que normalmente cintilavam com inteligência e um toque de ironia, estavam vazios, vidrados, como os de uma boneca de porcelana. Seu rosto estava sereno, mas não com paz; era a serenidade do sonâmbulo, daqueles que não habitam mais o próprio corpo. Ela caminhou em direção ao círculo de metal vazado onde o menino ajoelhado tremia, e seu movimento era fluido, irreal, como se estivesse sendo puxada por fios invisíveis.
"O véu entre os tempos é fino aqui," sussurrou Claudia, sua mente analítica lutando para processar o incompreensível. "Ela não está no passado. Ela está... em ambos os lugares. Eles a pegaram no presente e a estão usando no ritual do passado! Ela é o canal!"
O homem de insígnias pegou o cálice das mãos de Sônia com uma reverência grotesca. Ele o ergueu, e a adaga em sua outra mão pareceu vibrar com uma energia própria.
"O sangue do inocente, do purificado, alimentará a escuridão que nos serve!" sua voz ecoou na sala. "E o vaso do presente trará o poder para o futuro, amarrando o destino da Irmandade à eternidade!"
Eles entenderam, então, a verdade monstruosa. Sônia não era apenas uma vítima a ser sacrificada. Ela era uma peça fundamental. Seu sacrifício, realizado através do tempo, no ponto de conexão entre as eras, não apenas "alimentaria O Eco", mas solidificaria o poder da seita, permitindo que sua influência maligna se estendesse de forma ininterrupta do passado até o presente e além. Ela era a âncora.
O homem baixou a adaga em direção ao pescoço do menino. O menino gemeu, um som de puro desespero.
Ricardo não pensou. O instinto de proteger sua amiga, de quebrar aquele ciclo de horror, foi mais forte que o medo. Com um grito de raiva e terror, ele empurrou o pesado armário de ferro com toda a força que tinha.
O armário caiu para a frente com um estrondo cataclísmico, estilhaçando a porta de vidro e espalhando frascos e instrumentos pelo chão. O barulho foi como um raio na sala silenciosa.
Por um segundo, tudo parou.
Os homens da Irmandade se viraram, seus rostos não de surpresa, mas de uma fúria gelada e ancestral. Os olhos vazios de Sônia piscaram. Por uma fração de segundo, algo do seu eu verdadeiro pareceu lutar por trás daquela névoa, um lampejo de pânico e reconhecimento.
E então, as luzes começaram a oscilar violentamente. As sombras nas paredes se contorceram, alongando-se e tomando formas que desafiavam a anatomia. Do portal temporal atrás deles, um vento gélido e fétido soprou, trazendo consigo um sussurro profundo e multifacetado que parecia rasgar a própria mente.
Eles haviam interrompido o ritual. Mas despertaram algo muito, muito pior.
O Eco estava acordado. E estava faminto.
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